É o caso de sentir o cheiro da carniça só de ver as imagens do depoimento do coronel Brilhante Ustra à Comissão da Verdade (veja o vídeo). O ápice do conflito se dá quando Cláudio Fonteles saca da algibeira um documento do SNI (órgão do qual foi parido o presidente Figueiredo) segundo o qual o Doi-Codi presta contas ao II Exército, e atesta a prisão e morte de 47 pessoas em suas dependências, à época sob comando do coronel Brilhante Ustra: “foram mortos em combate, na rua” – contesta Ustra.
Não, diz Fonteles, é documento oficial dos órgãos de repressão, está aqui, claro: 47 pessoas presas e mortas nas dependências do Doi-Codi.
“Foram mortos em combate, mentira!” – grita Ustra.
O Doi-Codi não era exatamente um spa para rejuvenescimento dos inimigos do regime. Um combate – como insiste o Cel. Ustra – pressupõe igualdade de forças: todos sabemos que não houve combate algum dentro do Doi-Codi. Mesmo assim, Brilhante Ustra surta e urra por democracia. Recusa-se a fazer acareação com “ex-terrorista”. Bate na mesa, incorpora a infantaria, não vacila nem um segundo: encara Fonteles e José Carlos Dias como se tivesse num campo de batalha. Patético. Tão patético quanto conjecturar que Zé Dirceu, Dilma e Cia. Ltda. lutavam por democracia naquela época.
Leia também
O tempo passa. E agora todos são democratas. Engraçado como a tal de democracia se presta a canalhas e canalhices de qualquer espécie. Vale tudo em nome dessa vadia rampeira.
Bem, eu que sou anarquista e cristão (e mezzo punk também) desde criancinha, vou contar uma história.
Tinha 19 anos. Quando as pessoas têm 19 anos são folgadas pra cacete. Mas uma coisa é ter 19 anos em 2013. Outra, completamente diferente, era ter 19 anos em 1985. Além disso, eu servia o Exército Brasileiro. Vale lembrar que vivíamos numa época tensa: Diretas Já, os milicos ainda mandavam e desmandavam. As debutantes sonhavam com cadetes das Agulhas Negras e da Força Aérea. No Planalto Central, Gen. Newton Cruz estalava o rebenque, apavorava os jornalistas e prendia e arrebentava. Erasmo Dias era o Gianecchini da época. Amaral Netto sobrevoava Itaipu. Mario Amato, presidente da Fiesp, ameaçava uma revoada de empresários rumo a Miami caso Lula fosse eleito pra qualquer coisa diferente de porteiro ou contínuo da diretoria (ah, designações e nomenclatura: bobagens). Waltinho e Joãozinho Salles desfrutavam do catecismo lírico no colo de Santiago. O presidente Figueiredo preferia o cheiro dos cavalos ao cheiro do povo, e por aí a coisa ia.
E eu lá, no meu primeiro dia de CPOR, limpava o banheiro da cantina. Aluno 148, Mirisola – Primeira Companhia, Segundo Pelotão.
Desde sempre tive problemas de coordenação motora, por conta disso tive de aprender na marra a fazer gato e sapato do Tico e do Teco, do Juca e do Zeca, meus neurônios confessáveis – todos os quatro subordinados a Marisete, gênio que me assopra o final dos filmes. Isso significa dizer que, entre outras coisas, aprendi a adaptar as situações às minhas conveniências. Também aprendi a quebrar a cara, e a me matar para sobreviver. Sou um masoquista sádico, se é que isso é possível.
Daí que, nos tempos de CPOR, fazia questão de faltar aos exercícios e às instruções, e desafiava o oficialato e sobretudo o Capitão Mello com meus sofismas anarquistas. Não é de hoje que encho o saco das autoridades civis, militares e eclesiásticas. Porra, se eu zoava o Capitão Mello nos estertores da ditadura militar (mas era ditadura, março, abril, maio de 1985) por que, hoje, prestaria continência pros manos racistas e viadinhos dos cadernos culturais do Itaú? Medo mesmo – confesso: – só tenho da dona Marietta, mamma mia.
Acampávamos na fazenda/campo de instruções do Exército, em Barueri. Um frio medonho. Mijar nas calças pra esquentar o esqueleto era uma bênção. Se não fosse o Brecão a enterrar um cantil cheio de pinga atrás de uns pés de mamonas, talvez eu tivesse virado picolé de Mirisola.
Naquela madrugada, segundo a instrução, aprenderíamos a arte do “silenciamento de sentinelas”. Eu não apareci. Foi a noite mais bem dormida da minha vida: enquanto os outros alunos chafurdavam madrugada adentro num lamaçal imundo simulando degolas uns nos outros, improvisei um bivaque. E descansei feito um tatu, digo, um rei coberto por uma noite de estrelas e insubordinação.
No dia seguinte, na fila do rancho, Capitão Mello investiu furioso em minha direção. “Paga cem abdominais, cem flexões, duzentos cangurus”. Em 1985, ginástica era castigo. Eu disse que não. Que se ele não estivesse satisfeito comigo, que inventasse outra forma de castigo para me punir: os abdominais e as flexões até que eu encarava, mas não ia pagar canguru pra ninguém, coisa mais ridícula, nem em Barueri, nem na Austrália. Tensão militar. Pra relaxar os ânimos, eu que não fumava, pedi um cigarrinho a ele. A tropa urrava, entrou em transe, viajou e delirou no verde-oliva. Mello foi desmoralizado.
Naquela época isso tinha um nome. Algo que transcendia a mera insubordinação, era subversão. Eu era folgado demais. Me prenderam. Passei alguns dias na mais absoluta incomunicabilidade – porém, dois dias antes de me libertarem, Brecão contrabandeou um radinho de pilha. No final eu até que estava gostando: ouvia Louis Armstrong no programa de monsieur Gilbert, embora roído de pânico diante dos desdobramentos que aquilo podia ter. Ah, La Vie en Rose.
Depois, fui desligado. Os milicos alegaram que me faltava competência física, intelectual e psicológica para servir o Exército Brasileiro.
Saí de lá completamente aloprado: lia a manchete dos jornais e não entendia bulhufas. E olha que foram apenas alguns meses na caserna. Imaginem quarenta anos acreditando nessa babaquice de “ordem, disciplina e hierarquia”. O sujeito enlouquece.
Voltando ao coronel Ustra. Creio que esse velho maluco fez uma lavagem cerebral no próprio cérebro. Ele continua latindo, como latia há 40 anos. Ao assistir ao depoimento dele, estranhamente me bateu um sentimento bom, mistura de saudades, vergonha e isolamento. Parece esquisito. Mas esta Comissão da Verdade, pelo menos na audiência do Cel. Ustra, serviu mais do que pra lavar minha alma, a revirou do avesso. Como se eu voltasse aos meus 19 anos: me reconheci o mesmo garoto de gosto imprudente que ouvia Louis Armstrong na prisão, e que desprezava os milicos, e que – até hoje – continua desprezando a verdade deles, e quaisquer outras verdades, sejam elas proclamadas pelos inimigos de uns ou aliados de outros (tanto faz): a ordem dos fatores não altera o produto, sobretudo quando carrascos e vítimas estão unidos pela democracia. Quanto a mim, ah… Je vois la vie en noir et blanc.