Lauro Rutkowski*
A pedido do presidente do Senado, Garibaldi Alves Filho, o senador Demóstenes Torres (DEM-GO) foi incumbido de uma tarefa juridicamente espinhosa: apresentar à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), nos próximos 15 dias, um projeto de lei complementar que inviabilize o acesso de certos cidadãos a cargos eletivos.
A intenção declarada é evitar que “corruptos, ladrões e homicidas” obtenham o registro das candidaturas. Pelas primeiras declarações dadas sobre o tema, o senador Torres pretende estabelecer a barreira já na primeira instância judicial: aqueles que tiverem sido condenados em decisão de primeiro grau seriam impedidos de registrar a candidatura.
O dispositivo constitucional que incumbe o Legislativo definir, por lei complementar, quem pode e quem não pode se candidatar é o nono parágrafo do art. 14, abaixo transcrito:
“§ 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta. (Redação dada pela Emenda Constitucional de Revisão nº 4, de 1994)”
Leia também
Os casos de inelegibilidade já eram previstos na Lei Complementar 64/90 – que sofreu modificações em abril de 1994, dois meses antes da promulgação da emenda de revisão nº 4. Como não se vislumbra incompatibilidade entre a Constituição e a Lei, inexiste motivo para considerá-la revogada. Valem, portanto, seus preceitos ainda hoje, sempre interpretados à luz do texto constitucional.
PublicidadeA Lei Complementar 64/90 estabelece, no art. 1.º, inciso I, alínea “e”, os casos de inelegibilidade daquelas pessoas que sofreram condenação criminal. Entres os inelegíveis, estão aqueles cidadãos que foram “condenados criminalmente, com sentença transitada em julgado, pela prática de crime contra a economia popular, a fé pública, a administração pública, o patrimônio público, o mercado financeiro, pelo tráfico de entorpecentes e por crimes eleitorais, pelo prazo de 3 (três) anos, após o cumprimento da pena”.
Para evitar que o condenado venha a se candidatar, a lei conferiu a alguns legitimados o poder de impugnar a candidatura de pessoas que não apresentam, de acordo com os parâmetros da lei, condições para disputar um cargo público. Cabe a qualquer candidato, a partido político, coligação ou ao Ministério Público, no prazo de 5 (cinco) dias, contados da publicação do pedido de registro do candidato, buscar a tutela judicial no sentido de impugnar a candidatura.
Dessa forma, percebemos que vem de longa data a preocupação dos legisladores com o ingresso de “corruptos, ladrões e homicidas” na vida política nacional. A diferença, agora, é que se pretende dispensar o trânsito em julgado do decisum condenatório. É aí que mora o perigo.
A nossa Constituição, no art. 5º, estabeleceu, no rol dos direitos e garantias fundamentais, uma série de direitos e deveres individuais e coletivos. Entre eles, há um direito básico, previsto nos ordenamentos de qualquer democracia: o direito de somente atribuir o rótulo de “culpado” àquele que for condenado em decisão irrecorrível, após o devido processo legal, marcado pela ampla defesa e pelo exercício do direito ao contraditório.
Está lá na Constituição, de forma cristalina:
“LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”
O dispositivo integra o rol das cláusulas pétreas do parágrafo 4.º do art. 60. Ou seja, não pode ser modificado por emenda constitucional:
“§ 4º – Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I – a forma federativa de Estado;
II – o voto direto, secreto, universal e periódico;
III – a separação dos Poderes;
IV – os direitos e garantias individuais.”
E precedentes do Supremo Tribunal Federal não deixam dúvida quanto à solidez de tal princípio:
“Ninguém pode ser tratado como culpado, qualquer que seja a natureza do ilícito penal cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem que exista, a esse respeito, decisão judicial condenatória transitada em julgado. O princípio constitucional da não-culpabilidade, em nosso sistema jurídico, consagra uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido condenados definitivamente por sentença do Poder Judiciário.” (HC 79812 / SP – SÃO PAULO)
O leigo pode até se revoltar com um cenário político fértil em pessoas de má índole, má fama ou mesmo condenadas (sem trânsito em julgado da sentença). De fato, é revoltante, em termos morais, mas esse fato é legal e se apresenta em conformidade com os dispositivos constitucionais.
Daí porque há dificuldade em impor uma barreira eficaz, constitucionalmente falando, à pretensão de candidatos indesejados, nos moldes imaginados por alguns parlamentares. Na base de nosso ordenamento jurídico, está o princípio da presunção de inocência.
Seria suficiente a lei dizer que pessoas condenadas em primeira instância, com recurso pendente, não podem ser candidatas? A Constituição permite tal diretriz? À primeira vista, como não são “culpadas” – visto haver recurso capaz de modificar o julgamento de primeira instância –, parece ser inconstitucional tal hipótese.
Ou será que a sentença de primeiro grau não pode ser reformada em grau de recurso? Não existem fatos novos ao longo de um julgamento capaz de modificar a opinião do Judiciário sobre determinado fato? Não há fatos antigos interpretados a partir de outra ótica durante um julgamento? É legítimo impedir o exercício da cidadania de uma pessoa por haver um processo em curso contra ela? E se ela for inocente?
O problema, na verdade, situa-se em outra órbita: a morosidade do nosso sistema Judiciário em oferecer à sociedade uma decisão definitiva rápida sobre os processos que lhe são submetidos. Há problemas de diversas ordens, que variam desde as normas processuais de tramitação do processo penal até a inadequação da estrutura da máquina estatal em face das necessidades de justiça da sociedade. Não cabe aqui discuti-los a fundo.
Em uma ligeira análise, parece fora do razoável obstar o exercício da cidadania de quem que seja por conta de uma condenação passível de reversão. Parece mais razoável dotar o Estado de instrumentos que possibilitem a aceleração do processo rumo ao trânsito em julgado da decisão, de forma a se saber, o mais rapidamente possível, se aquele cidadão é culpado – no estrito sentido da Constituição. Com a sentença transitada em julgada, aí sim se poderia considerar alguém culpado de crime e barrá-lo, impedindo-o de ingressar na vida pública.
Outra idéia para debate seria a possibilidade de permitir a perda automática do mandato com eventual condenação transitada em julgado, sem necessidade de declaração. Atualmente, segundo a Constituição (artigo 55, parágrafo 2º) parlamentares condenados na esfera penal só perdem o mandato (após sentença transitada em julgado, repita-se) se assim deliberar, por voto secreto, a maioria absoluta do Senado ou da Câmara, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.
O Código Penal prevê que um dos efeitos da condenação de servidor público (lato sens) é a perda do cargo, função ou mandato eletivo em hipóteses restritas,em que há perda da liberdade por ordem judicial, presente nas alíneas “a” e “b” do inciso I do art. 92:
Art. 92 – São também efeitos da condenação: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
I – a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo: (Redação dada pela Lei nº 9.268, de 1º.4.1996)
a) quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública; (Incluído pela Lei nº 9.268, de 1º.4.1996)
b) quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a 4 (quatro) anos nos demais casos. (Incluído pela Lei nº 9.268, de 1º.4.1996)
Ora, se houvesse mudança na Constituição (art. 55, parágrafo 2º), quanto ao rito de perda de mandato, e no Código Penal (art. 92), quanto à ampliação das hipóteses de perda de mandato por força de condenação criminal transitada em julgado, talvez ficasse mais fácil aos órgãos do Legislativo “cortar na própria carne”.
Muitos podem dizer que seria melhor impedir que o joio se misturasse ao trigo já na fase do registro das candidaturas. Porém, a proposta constitucionalmente possível aponta para outros caminhos juridicamente mais seguros, no qual são pressupostos um Judiciário célere, um Código de Processo Penal mais racional e algumas mudanças na forma de perda de mandato.
* Lauro Rutkowski, 40 anos, é jornalista e advogado, sócio do escritório Quintanilha, Rezende & Rutkowski, com sede em Brasília.
Deixe um comentário