Desde a extração do pau-brasil e dos engenhos de cana mantidos pelo trabalho escravo, no Século 16, o agronegócio brasileiro caminhou uma longa estrada.
O setor moderno, mecanizado, amparado na tecnologia e na pesquisa científica que hoje floresce foi responsável, em 2019, por 21,4% do Produto Interno Bruto do País gerando R$ 1,55 trilhão em bens e serviços.
Mas a essência dessa atividade que se quer tão contemporânea — “O agro é tech, o agro é pop, o agro é tudo”, dizia a campanha publicitária — segue marcada por uma profunda contradição. Se é inegável que o agronegócio saiu do século 16, não é tão verdade que o século 16 tenha saído do agronegócio.
Apoiado na tecnologia de ponta, na pesquisa e em estratégias de negócios de última geração, largos segmentos desse setor econômico ainda cultivam noções como “propriedade acima de tudo”, minimizam as preocupações contemporâneas com o meio ambiente e tratam conquistas civilizatórias, como os direitos trabalhistas, como “entraves ao desenvolvimento”.
São bem conhecidos os efeitos dessas contradições para as populações indígenas, para os trabalhadores rurais e agricultores familiares e para a saúde do nosso meio ambiente. Mas elas também têm impactos graves sobre o agronegócio do século 21.
Basta ver o resultado das hostilidades dirigidas à China, o maior mercado para nossa produção agrícola e pecuária — e é importante destacar que essas provocações não são apenas emanadas pelo governo maciçamente votado pelos empresários do setor, mas são amplamente ecoadas em canais de comunicação do mundo agro.
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Por mais que se sinta — e, efetivamente, seja —uma força motriz da nossa economia, o pujante agronegócio brasileiro do Século 21 não existe em um tempo paralelo, onde caberiam a contemporaneidade e o século 16.
O agronegócio não desenvolve suas atividades em um país à parte. Ele depende da logística brasileira, dos mercados conquistados e mantidos por políticas públicas — onde a diplomacia ocupa papel fundamental —, de regras de certificação que exigem a fiscalização para ter credibilidade. Resumindo: depende do Estado, que descreve como “estorvo”.
Imerso neste País real, o agro não pode reivindicar a contemporaneidade técnica, amparada na “mais avançada das mais avançadas das tecnologias”, como já cantou Caetano, se não enfrentar sua história e contribuir para a superação das sequelas de 388 anos de escravidão e de 520 anos de franca hostilidade aos primeiros donos do território, os indígenas.
Também não pode se reivindicar como mecanismo que opera em um planeta a parte, esquecendo da necessidade de cuidar da terra onde deita suas sementes e do ambiente que as faz germinar e dar frutos.
O agronegócio do Século 21, que responde por 21,4% do PIB, precisa expulsar de vez o Século 16 e enfrentar seus bolsões internos que teimam na mentalidade endurecida, isolada dentro de uma cerca, aferrada a convicções inamovíveis.
Precisa lembrar, todos os dias, que o pé na contemporaneidade sempre terá seu avanço empatado, enquanto seu corpo ainda tiver um pé calçando a bota do senhor de engenho.
Para os que clamam pelo liberou geral para os agrotóxicos, que desdenham da segurança e da dignidade no trabalho — em um país que ainda resgata gente submetida a condições análogas à escravidão — e consideram a fiscalização ambiental uma afronta à produção, é bom lembrar que não é o Estado que atrapalha. É o Século 16.
Produzir a qualquer preço era essência da rapina colonial. Era o cerne de um modelo econômico baseado em arrebatar o máximo de riquezas, embarcá-las na próxima caravela e levar os lucros para a metrópole — e nunca é demais lembrar que os chamados armadores das empresas coloniais eram sócios da Coroa e não prosperariam sem ela.
A renitência do Século 16 sonhou com um governo sem Ibama, sem fiscalização do trabalho, sem demarcações de terras indígenas, sem MST, sem CLT.
Conseguiu. E, desde então, o Brasil vem colecionando manchetes internacionais, cada uma delas uma pá de terra sobre o agronegócio do Século 21.
Queimadas na Amazônia, veneno nas lavouras, desmatamento e perseguição aos povos indígenas estimulam boicotes a produtos brasileiros.
Uma diplomacia desastrada acha natural abandonar as regras do respeito e diálogo exigidos pelas relações entre Nações para provocar a China, os Países Árabes e vizinhos do Mercosul, fechando portas à nossa produção.
A porção Século 16 quis um governo que lhe permitisse “passar com a boiada”. Conseguiu, e as consequências serão arcadas pela face Século 21 do agronegócio.
“Cuidado com o que você deseja, pois pode se tornar realidade”. Essa máxima — ironicamente, um provérbio chinês — descreve bem os dilemas do agronegócio brasileiro.
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