O acidente nuclear em Fukushima reacendeu o debate sobre a política nuclear e a segurança das usinas; debate, aliás, quase inexistente no Brasil. Nessa discussão, a ideia da aldeia nuclear tornou-se importante no Japão. A noção deriva do fato de que os habitantes de uma aldeia tendem a compartilhar crenças, a defender-se mutuamente e a marginalizar aqueles que não comungam do mesmo credo. Hoje, no país do sol nascente, a ideia de aldeia nuclear refere-se à intrincada e nada transparente rede de relações entre indústria nuclear e agentes governamentais.
Naquele país, a promoção da energia nuclear é tarefa do Ministério do Comércio, Economia e Indústria, ao qual está subordinada a Agência Japonesa de Segurança Nuclear e Industrial; ou seja, o órgão que promove a indústria cuida também da segurança. O conflito é evidente, e os riscos de segurança tendem a ser minimizados para não prejudicar as perspectivas comerciais. São muitos os casos relatados de funcionários que fazem suas carreiras ora na indústria, ora na agência. Esta se vale de funcionários das empresas para ajudar a escrever inclusive regras de segurança, e muitos de seus ex-funcionários tornam-se conselheiros, consultores ou diretores das empresas do setor. Nessa comunidade, só progride quem comunga do mesmo credo. Quem diverge tem sua carreira ameaçada. Daí, a ideia de aldeia nuclear.
A mesma usina de Fukushima já havia sofrido outro acidente no ano 2000, embora não tão grave quanto o atual. O técnico que apontou as falhas causadoras daquele episódio hoje trabalha nos EUA, pois não consegue emprego no Japão. Somente em 2002, porém, quando vazou a notícia do acidente e das falhas que o causaram, é que a agência tomou algumas atitudes, entre elas exigir a saída de executivos que haviam acobertado as deficiências. Diversos deles, então, ganharam altos cargos em conselhos de outras empresas do setor e também no ministério; era a aldeia funcionando. Um deles tornou-se o equivalente a senador escolhido indiretamente, mediante indicação de um dos financiadores do Partido Liberal Democrata , e naquela Casa defendeu com ardor a indústria nuclear e ajudou a elaborar um plano para elevar dos 34% atuais para quase 70% a participação da energia nuclear na matriz energética japonesa.
No Japão de hoje, a leniência das autoridades com a questão da segurança tem sido apontada como uma das causas das falhas no sistema de proteção contra tsunamis da usina de Fukushima. Naquele país, o pouco interesse com as questões de segurança que o comando político nacional tem mostrado tem sido explicado pelo fato de ele ser um dos principais beneficiários da indústria nuclear: exigências de segurança mais rígidas dificultariam novos projetos, que geram contratos de construção, empregos e generosas contribuições políticas. Isso no Japão, país que em 2010 aparece com nota 7,8 no índice de corrupção percebida, publicado anualmente pela Transparency International. Esse índice varia de 10, para os países menos corruptos, a zero, para os mais. O Brasil tem nota 3,7.
Por outro lado, sabe-se que a energia nuclear emite menos gases de efeito estufa do que usinas equivalentes movidas a combustível fóssil. Essa característica tem sido vista, pela indústria nuclear, como uma grande oportunidade. Para explorá-la, o ministério japonês, recentemente, tornou-se sócio, com 10% das ações, de uma empresa denominada International Nuclear Energy Development of Japan. Outro sócio, com 20%, é a Tepco, proprietária da usina de Fukushima. O objetivo da nova empresa é expandir as exportações japonesas de usinas nucleares para os países em desenvolvimento.
O senso de oportunidade dos japoneses se revela quando lembramos que o Ministério das Minas e Energia brasileiro tem anunciado planos de construir dezenas de usinas atômicas.
A prática de profissionais movimentarem-se entre governo e indústria não é só japonesa. Nos EUA, recebe o nome de revolving door, ou porta rotativa. Curiosamente, no português do Brasil parece não haver um nome próprio para essa movimentação, também frequente nos mais diversos setores, entre eles o de energia, o bancário e o de telecomunicações. Nesse sentido, cabe indagar, por exemplo, por que os custos de energia, de telecomunicações e do dinheiro, no Brasil, estão entre os mais elevados do mundo.
Aqui em Sucupira, pouco se debate sobre as relações opacas entre governo e indústria. Houve, há poucos anos, uma medida, quase irrelevante, exigindo uma quarentena de alguns meses entre deixar certos órgãos reguladores e assumir funções numa das empresas reguladas, como se não existissem telefones nem contratos futuros.
O debate sobre a reforma política deveria incluir, também, questões mais profundas sobre esse complexo mecanismo e suas possíveis consequências negativas para os interesses da população. Parece, porém, que ficaremos apenas com alguma versão do distritão…
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