Cláudio Versiani, de Nova York*
Depois dos atentados de 11 de setembro, um apagão em pleno verão de 2003 e uma greve do transporte público na véspera do Natal em 2005, o que falta para testar a resistência do novaiorquino? Melhor nem pensar.
A cidade mais uma vez sobreviveu com dignidade. Patins, skate, patinete, bicicleta, tudo isso é comum na paisagem plana da ilha. As pessoas só não tiveram opção: ou usavam um meio de transporte alternativo ou gastavam a sola do sapato, ou do tênis, que também é uma marca registrada da cidade.
Teve gente que gostou da tranqüilidade do trânsito novaiorquino nos dias de greve, especialmente um grupo de ciclistas que, em toda última sexta-feira do mês, sai pedalando pela cidade, promovendo o tal do transporte alternativo. Desde julho de 2004, durante a convenção republicana, a polícia resolveu proibir o passeio coletivo. A alegação é que os ciclistas atrapalham o trânsito e não respeitam as regras. Durante os três dias de greve, a bicicleta reinou absoluta em Nova York. Se os restaurantes ficaram vazios e o comércio sofreu, as lojas de bicicletas venderam os seus produtos como se fosse verão.
A polícia fez barreira nas entradas da ilha, túneis e pontes, só passavam carros com pelo menos quatro ocupantes. A carona foi obrigatória, paga, no caso dos táxis e vans comunitárias, ou de graça, nos carros particulares. Foi o transporte solidário, instituído por necessidade.
A greve trouxe confusão para a cidade, cada um viveu seu drama particular, mas, no geral, a população apoiou os trabalhadores. Natal em Nova York é coisa de filme, superprodução. A cidade fica lotada de turistas. Com a greve, a vida tomou um ritmo lento.
PublicidadeQuem sofreu de verdade foram os homeless, os sem-teto que usam os trens e as estações de metrô para se abrigar do frio. As 468 estações de metrô da cidade foram fechadas e vigiadas pela polícia. Nova York tem 4.395 homeless (censo de 2004) vivendo nas ruas do Bronx, Brooklyn, Queens, Staten Island e Manhattan. A ilha, aliás, tem a maior população de sem-tetos: 1.800. Só no metrô vivem 845.
A polícia colocou 16.000 guardas na rua para controlar o tráfego e vigiar as estações de metrô. O custo seria de US$ 10 milhões diários, segundo o chefe da corporação. Como eu disse na coluna passada, tudo aqui é exagerado.
É muito dinheiro, mesmo para quem tem um orçamento anual de US$ 3,4 bilhões. A greve gerou, além de todo o transtorno, uma disputa política pesada. A informação tinha mão e contramão, sem contar as cascas de banana espalhadas pelos trilhos.
O sindicato dos trabalhadores arriscou uma jogada e ficou encurralado. Na véspera do Natal, no paraíso do consumo, decretar uma greve que deixa 7 milhões a pé, não dá. Eu andei 120 quarteirões no segundo dia. Teve gente que andou o dia todo e no frio. Frio de Pólo Norte, -6 graus.
O prefeito Michael Bloomberg chamou os grevistas de egoístas e irresponsáveis, e acusou o sindicato de práticas criminosas. Disse que a greve era ilegal e moralmente repreensível. O presidente do sindicato, Roger Toussaint, respondeu que a linguagem do prefeito era desrespeitosa. Citou Martin Luther King e Rosa Parks, a mulher negra que um dia entrou num ônibus, sentou nos bancos reservados aos brancos e mudou a história. O presidente ainda deu a entender que o comportamento do prefeito e da MTA, a administradora do transporte em Nova York, era racista.
Toussaint é um trabalhador que executa manutenção nas linhas de metrô, ou executava, antes de se tornar presidente do sindicato. Bloomberg é um bilionário que, em novembro passado, se reelegeu prefeito de Nova York. Gastou US$ 77 milhões do próprio bolso na campanha. Dinheiro não é preocupação para o prefeito. É óbvio que eles não compartilham a mesma visão de mundo. Há um grande curto circuito aí, ou tem boi na linha, para ficarmos com uma imagem mais de acordo com o tema.
Se Bloomberg jogou pesado, o governador do estado de Nova York, George Pataki, não fez por menos. Repetiu a ladainha. Pataki tem ambições políticas, quer disputar a indicação do Partido Republicano para se candidatar à presidência. Sem a mesma firmeza do prefeito, Pataki ficava repetindo o que Bloomberg dizia. Ele precisava mostrar que é um governador linha-dura. Os republicanos do resto do país estavam de olho, mas a cara insossa do governador de Nova York não convenceu. Bloomberg e Pataki são da turma de Bush. O mundo é preto e branco, cinza não existe para eles. E negociação não é o forte da dupla.
A imprensa, de uma maneira geral, contribuiu, metendo o pau nos trabalhadores. A capa do NY Post os chamou de ratos. Na rede de TV Fox News, uma enorme legenda dizia: greve ilegal. Rupert Murdoch, dono da Fox e do Post, é mais um da turma de Bush. Nós já vimos esse filme no Brasil, e continuamos a ver, infelizmente. Uma imprensa chapa-branca – “se há governo, sou a favor”. Nada a ver com o ditado espanhol.
A MTA quis mudar as regras do jogo no finalzinho do segundo tempo. Na mesa de negociação para um novo contrato de trabalho, propôs mudança da idade para se aposentar, de 55 para 62 anos, para os novos trabalhadores. Logo depois, quis que a contribuição para a aposentadoria aumentasse de 2% para 6%. A MTA alega que, só com pensão, irá gastar US$ 540 milhões em 2006 e prevê que, em 2009, o gasto será de US$ 1 bilhão. Ninguém pôs muita fé nos cálculos porque a administradora dos transportes não se dá bem com os números. Eles tinham previsto um déficit de US$ 500 milhões e estão com um superávit de US$ 1 bilhão.
O fato é que o serviço de metrô em Nova York vem piorando. Estações estão sendo fechadas, linhas suprimidas, há menos trabalhadores por trens e linhas. O preço da passagem aumentou de US$ 1,5 para US$ 2 há pouco mais de um ano. O preço dos passes diários, semanais e mensais aumentou duas vezes nos últimos três anos. Nos finais de semana, o sistema de metrô não é confiável. É tanta confusão com trocas e substituições de linhas que ninguém entende nada, fora as estações que permanecem fechadas por medida de economia.
Um trabalhador do transporte público de Nova York ganha em média US$ 47 mil por ano. Com as horas extras, o salário vai para US$ 55 mil. Dirigir no trânsito da cidade é estressante, e passar a vida debaixo da terra também não é agradável. O sindicato dos trabalhadores estava pedindo 3% de aumento a cada ano. O contrato de trabalho valeria até 2009.
O New York Times deu uma matéria mostrando que, com as mudanças propostas pela MTA, a economia seria de US$ 20 milhões ao longo dos próximos três anos. O prefeito afirmou que a cidade estava tendo um prejuízo de US$ 400 milhões diários. A greve gerou uma disputa mais política do que econômica. Mesmo assim o jornal meteu o pau na greve em seu editorial.
Um juiz da corte estadual ameaçou prender os líderes dos trabalhadores e estipulou uma multa de US$ 1 milhão por dia de greve. O objetivo era quebrar o sindicato. Greve no serviço público é proibido por lei desde 1967. Com tanta pressão, o sindicato suspendeu a greve e voltou à mesa de negociação.
No apagão de 2003, descobri que a cidade vive na vertical. Quando as pessoas desceram dos prédios, as calçadas não foram suficientes para tanta gente e os carros tiveram que dividir as ruas com os pedestres. Na greve ficou claro que a cidade se locomove no subterrâneo também, dos 7 milhões de usuários do transporte público, 4,5 milhões usam o metrô. Os outros 2,5 milhões usam o ônibus. Desta vez, a cena se repetiu, as ruas novamente foram dos pedestres, das bicicletas, dos patins…
A cidade passou por mais um teste, três dias de relativa confusão em que o novaiorquino contornou a situação, ou tirou de letra. Mais uma vez, solidariedade foi a palavra que definiu o comportamento do povo dessa cidade.
PS: Feliz 2006, sem atentados terroristas, sem greve dos transportes públicos e com um pouco de paz. Sem guerra e sem Bush… aí é pedir muito, não?
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