O futuro da única empresa pública de caráter nacional do país é incerto desde a campanha presidencial. Enquanto candidato e depois como presidente, Bolsonaro já deu inúmeras declarações contraditórias sobre o que pretende fazer com a Empresa Brasil de Comunicação, a EBC. Primeiro, defendia sua extinção; depois, sua privatização. Por fim, resolveu se apropriar de seu potencial de difusão informativa em todo o país para transformar os canais geridos pela EBC em verdadeiras máquinas de propaganda do governo. Um dos mais afetados foi a TV Brasil que, em abril deste ano, foi alvo de uma portaria determinando a fusão de sua programação com a da NBr, o canal de TV estatal do Poder Executivo.
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A ilegalidade e inconstitucionalidade é tamanha que levou o Ministério Público Federal (MPF) a entrar, na última sexta-feira (26), com uma Ação Civil Pública pedindo a anulação da portaria e exigindo que a EBC e a União, de maneira permanente, não mais insiram conteúdos estatais na TV Brasil.
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Desde a publicação da portaria, a emissora, que nasceu em 2007 como um dos principais mecanismos de efetivação do princípio constitucional da complementaridade entre os sistemas público, estatal e privado de comunicação, passou a abrigar em sua programação diária horas e horas de conteúdo governamental, produzidos por servidores ligados à NBr. Nos programas de entrevistas veiculados pela TV Brasil, só convidados ligados ao Executivo ou à base de apoio do governo. No principal telejornal do canal, exibido à noite, cerca de 40% do conteúdo veiculado vem diretamente da comunicação do Planalto.
Na prática, enquanto o debate público sobre a empresa de comunicação é mantido longe da sociedade em geral, o governo Bolsonaro dá cada vez mais sinais de que já entendeu muito bem o tamanho de sua importância e alcance e, exatamente por isso, tem aumentado o nível de controle e censura, atropelando a diferença fundamental entre os veículos de caráter público e os estatais.
Inclusão indevida de conteúdo estatal na TV Brasil confunde telespectador
Além da Constituição, os procuradores regionais dos Direitos do Cidadão no Rio de Janeiro, Sergio Gardenghi Suiama e Renato Machado, basearam a Ação Civil Pública na Lei Federal 11.652/08, que criou a EBC, e que determina, em seu Art. 2o, a “autonomia em relação ao Governo Federal para definir produção, programação e distribuição de conteúdo no sistema público de radiodifusão”.
Já o Art. 3o diz que, entre os objetivos dos serviços de radiodifusão pública, está o de “oferecer mecanismos para debate público acerca de temas de relevância nacional e internacional”, claramente prejudicado num contexto em que o governo federal define o que vai ao ar ou não no canal público de televisão e que devia, portanto, estar a serviço de informações de relevância para a sociedade em geral, garantindo espaço para pontos de vista que representem sua composição e diversidade, cumprindo papel essencial na construção da democracia no país.
Para Suiama e Machado, além da inclusão indevida de programações tipicamente estatais e de interesse dos atuais ocupantes do Poder Executivo no canal público federal, o caso se agrava porque o telespectador da TV Brasil não tem qualquer possibilidade de “distinguir com clareza quais programas ou emissões tratam da divulgação, pelo Executivo, de atos de governo ou emulações de seus feitos, e quais cuidam, de forma imparcial e independente, da cobertura jornalística dos fatos nacionais e internacionais”.
O jornal estatal “Brasil em Dia”, por exemplo, veiculado de manhã em substituição ao telejornal público “Repórter Brasil” não possui nenhum logotipo ou marca que indique ao telespectador que as matérias são de conteúdo governamental. Apenas as inserções com duração de até 3 minutos, que antes eram de caráter público (“Notícia Agora”), agora possuem clara referência a conteúdo estatal, passando a se chamar “Governo Agora”, sendo mais um espaço de propaganda do governo no canal.
Na avaliação dos procuradores, a pretexto de reduzir despesas, a nova direção da empresa literalmente invadiu o canal público com conteúdos de nítido interesse do Poder Executivo, inclusive interrompendo a programação normal da TV Brasil para a transmissão de solenidades no Palácio do Planalto – algo que, antes da fusão, cabia à NBr.
Para o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal, que foi acionado pelo MPF para a obtenção de informações sobre as mudanças na empresa pública, a unificação das TVs também se deve ao fato de a NBr não possuir audiência relevante, enquanto a TV Brasil tem hoje, segundo o IBOPE, a sétima maior audiência do país nas TVs aberta e por assinatura. De acordo com o Sindicato – que em gestões anteriores do Planalto também denunciou ingerências governamentais no canal público –, o quadro atual extrapola todas as situações registradas anteriormente, com a perda total do caráter público da empresa.
A EBC, por exemplo, nunca havia destinado tamanho espaço para programas que divulgam as ações das Forças Armadas – setor que está à frente da Secretaria de Governo, responsável pelo gerenciamento da empresa pública. A nova grade da TV Brasil exibirá ao menos quatro programas para as Forças Armadas: dois para a Marinha, um para o Exército e outro sobre a “Missão Antártica”, que envolve a participação da Força Aérea Brasileira.
Fim da programação regional
Outra medida da direção da EBC questionada na ação do MPF foi a extinção da filial da TV Brasil no Maranhão, responsável pela produção de conteúdo regional e de um jornal local no ar há mais de 35 anos. Desde maio, o canal é um mero retransmissor da programação produzida em âmbito nacional.
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Quando foi criada, em 2007, a TV Brasil nasceu da fusão de três canais públicos já existentes, entre eles a TV Educativa do Maranhão. Por isso, a lei que criou a EBC proibiu, expressamente, que a empresa interrompa a geração de conteúdo regional no Maranhão, assim como no Rio de Janeiro e em Brasília, sede dos outros dois canais. Contrariando a lei, a EBC acabou, mediante simples decisão de sua diretoria, com a produção de conteúdo regional público no Maranhão, assim como encerrou os jornais locais produzidos em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília.
O MPF pede agora que a União e a EBC sejam condenadas a cumprir a Lei 11.652/08, garantindo de forma permanente a produção de conteúdo local nas filiais do Maranhão, Distrito Federal e Rio de Janeiro e o respeito ao objetivo de exibição de produções regionais e independentes pela comunicação pública.
Exclusão da participação social
A ação do Ministério Público Federal pede, por fim, que seja instalado o Comitê Editorial e de Programação da EBC, criado pela Lei 13.417/17, em substituição ao Conselho Curador da empresa, extinto via Medida Provisória do governo Michel Temer. Segundo a lei, o Comitê seria o “órgão técnico de participação institucionalizada da sociedade na EBC, com natureza consultiva e deliberativa, integrado por onze membros indicados por entidades representativas da sociedade, mediante lista tríplice, e designados pelo Presidente da República”.
Ocorre que, transcorridos mais de dois anos, não há nem sinal de criação do Comitê Editorial e de Programação, de maneira que os canais da EBC seguem sendo, paradoxalmente, totalmente geridos por agentes submetidos ao Poder Executivo, violando totalmente seu caráter público. Assim como os deveres de autonomia em relação ao governo federal e de veiculação de programação regional e independente, a Lei da EBC também determina a “participação da sociedade civil no controle da aplicação dos princípios do sistema público de radiodifusão, respeitando-se a pluralidade da sociedade brasileira” – princípio solenemente ignorado e desrespeitado por Bolsonaro, não apenas no âmbito da comunicação pública.
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