Márcia Denser*
A Era da Indeterminação é outro lançamento que minha boa amiga Ivana Jinkings da Boitempo me envia, da coleção Estado de Sítio coordenada por Paulo Arantes, ele próprio autor do Extinção, vastamente comentado nesta coluna aí pelo início deste ano. É uma coletânea de ensaios cujo texto-título está assinado pelo outro Chico, o de Oliveira, o Homem do Ornitorrinco[1].
No raciocínio materialista do Chico de Oliveira, consciência e decisões racionais ocupam um lugar central, em detrimento dos mecanismos cegos dos interesses
O posterior ajuste intelectual – com FHC e banqueiros-intelectuais à frente – simplesmente fez a mesmíssima “opção”, mas com uma tremenda “consciência”, aquela a pontificar que “fora da globalização não havia salvação”. Ironicamente, hoje, apesar de conectados e emergentes, em dia com o FMI, rezando a cartilha do Acordo de Washington, com a mídia, a universidade, a ciência, a arte, a cultura, o esporte totalmente rendidos ao Mercado, tudo o que existe é o vazio, a ausência de pensamento no bloco dominante da crueldade, pois o núcleo duro da estupidez inteligente resplandece na nova classe identificada pela zoologia fantástica do Chico de Oliveira.
PublicidadePreferimos o subcapitalismo dum país-favela atravessado pelo tumulto de um gigantesco proletariado informal. Que é sistêmico em todos os países periféricos e periferias dos centrais, caminhando velozmente para a periferização ou brasilianização do mundo inteiro, algo como a extensão planetária da nossa fratura. Afinal, o Brasil não era o país do futuro? O sonho do passado é o pesadelo presente.
Mas este Chico continua confiando na hora do auto-esclarecimento promovido pela consciência dos direitos do antivalor, ou seja, que uma sociedade de classes não perca definitivamente a memória de que trabalho, terra, moeda e, agora, informação são falsas mercadorias. Mas como uma sociedade-ornitorrinco é um organismo que só funciona mas não pensa, é daí que jorra a brutal inteligência asnática, uma total contradição nos termos com bico de pato e corpinho de lontra. No trecho a seguir, um pouco do chumbo grosso do que vem por aí na irretocável análise deste Chico:
“Nessas condições só o capital financeiro sai lucrando, mas isso tem claros limites: a fração dos juros no PIB, para pagar a dívida interna e a externa, cresce até provocar uma retração do investimento produtivo, o que assinala que o capital fictício ou virtual permanece ligado ao produtivo – e por esse movimento chega a hora de realizar o valor, quando então o castelo de cartas desaba.(…) A falência de grandes conglomerados como o Enron e o World Com é exatamente o ‘castelo de cartas’”.
Na Grande São Paulo, o trabalho sem-formas inclui mais de 50% da força de trabalho, e o desemprego aberto saltou de 4% em 1990 para 8% em 2002; entre desemprego e trabalho informal transita, entre o azar e a sorte, 60% da força de trabalho brasileira. (…) O cinturão de pobreza inclui mais de 50% da população e um terço vive abaixo dessa linha. Tal situação deve-se ao aumento da produtividade do trabalho, combinado com a privatização e a desnacionalização, sancionados semanticamente pela desqualificação dos atores. É o mesmo mecanismo do trabalho abstrato molecular-digital que extrai valor ao operar sobre formas desorganizadas do trabalho.
No Brasil, o fenômeno é escondido pelo fato do aumento do desemprego; mas se se calcular a produtividade do trabalho levando-se em conta apenas a fração do trabalho formal, ressaltará de imediato o salto de produtividade obtido. A contradição reside em que é esse salto na produtividade que alimenta o trabalho informal, sobre o qual não se pode estimar a produtividade, justamente porque lhe falta a relação com o capital”. (grifo meu).
Observem ainda que esses “ínfimos” 60% da mão-de-obra brasileira, que é informal, sem CPF, RG ou CEP, porém com existência, interferência e poder aquisitivo nada desprezível, ficam fora do alcance do Estado, dos partidos políticos e das instituições em geral, mas a recíproca
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