Não há dúvidas de que a internet tornou-se essencial para as atividades cotidianas de boa parte da população. Parte do acesso a serviços públicos só se dá pela internet. Emissão de nota fiscal eletrônica, declaração para a Receita federal, inclusão no Enem. E a perspectiva do Executivo e do Legislativo é acelerar este processo – há uma série de projetos de lei para digitalização dos serviços públicos, considerados prioridade pelo governo. Assim, é sem surpresa que recebemos a informação de protocolo de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC 8/2020) no Senado, com assinatura de mais de 30 senadores de diversos partidos que visa incluir o acesso à internet entre os direitos fundamentais na Carta Magna.
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Na justificação, aquilo que as relatorias de liberdade de expressão da ONU e Organização dos Estados Americanos (OEA) vêm afirmando há anos: a eventual falta de acesso à internet limita de modo irremediável as oportunidades de aprendizado e de crescimento, de educação e de emprego, comprometendo não apenas o futuro das pessoas individualmente, mas o próprio progresso nacional.
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Mas, para além da disposição constitucional, é preciso fazer muito mais para permitir que cidadãs e cidadãos possam de fato estar conectados/as e fazer uso amplo dos recursos a partir da conexão à rede mundial de computadores. A pandemia de coronavírus é uma mostra do desafios que temos pela frente. Para quem está buscando informações continuamente, vale lembrar que um terço dos domicílios do país não tem acesso à conexão, de acordo com a pesquisa TIC Domicílios. Nas classes D e E, este percentual alcança 59%. Um dos maiores entraves para o acesso é preço: 60% dos que justificaram não ter acesso à internet alegaram que é muito caro.
No Brasil, a Anatel, repetindo o movimento da Federal Communication Comission (FCC), o órgão regulador americano, enviou comunicado pedindo que as empresas liberem suas redes Wi-Fi em locais públicos e ampliem a velocidade nos acessos fixos, além de permitir acesso ao aplicativo do Ministério da Saúde. Mas essas medidas não atendem a 47% de domicílios das classe D e E que têm apenas conexão móvel em casa, limitadíssimos pelo pacotes de dados, ou o um terço da população desconectada em domicílio. A Anatel, para prover a população com informações e possibilidade de trabalhar e estudar remotamente no momento de pandemia, deveria orientar as empresas a não bloquearem o tráfego após o limite de contrato, mas reduzir a velocidade. Isso ajudaria a todos.
À medida que mais pessoas dependem da conexão remota para atividades que requerem alto volume de tráfego de dados, como para reuniões de trabalho e aulas, fica visível a limitação dos pacotes disponíveis para a maior parte da população. Uma professora universitária ministrava aulas por sistema de videoconferência, quando seus alunos começaram a desaparecer. Ela recebeu um aviso: havia acabado o pacote de dados de alguns.
PublicidadeHoje, apesar da internet ser essencial para o pleno exercício da cidadania, o serviço pode ser descontinuado não apenas pela ausência de pagamento, mas também após excedido o volume de dados contratado. É a criação de escassez artificial para elevar a lucratividade do negócio. É bom lembrar que durante um bom tempo a conexão à internet funcionou pela regra do melhor esforço, com o limite de a empresa entregar na maior parte do tempo a velocidade contratada pelo usuário – e publicizada pelas companhias. Os contratos eram por velocidade.
O modelo se estabeleceu na modalidade de banda larga móvel e apenas uma reação enérgica dos consumidores impediu que as empresas migrassem a prática no Brasil para que as conexões fixas. A questão é que boa parte dos brasileiros apenas tem conexão móvel.
O Intervozes defende que a conexão é essencial e portanto não deve ser cortada após atingido o limite de dados. A alternativa ao corte seria o usuário estar sujeito às oscilações do tráfego e ter a velocidade reduzida, desde que garantido o mínimo de condições de acesso a informações, porque este é um direito.
Vale lembrar que o Senado aprovou um projeto de lei de autoria de Ricardo Ferraço (PSDB/ES) para blindar os usuários brasileiros do bloqueio da navegação por limite de tráfego de dados, pelo menos na banda larga fixa, em que o modelo de negócio ainda não ganhou espaço – porque diante da tentativa das operadoras, os usuários se revoltaram e pressionaram Anatel e o então Ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Gilberto Kassab, às vésperas de eleições.
Na Câmara dos Deputados, o PL 7182/2017 foi aprovado na Comissão de Defesa do Consumidor, a tramitação na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática tinha relatório favorável do deputado André Figueiredo (PDT-CE). Mas não se sabe por qual interesse, o Deputado Eros Biondini (PROS-MG) pediu o apensamento da matéria em um bloco de projetos de lei, o que congelou a tramitação até o momento. A franquia na banda larga, fixa e móvel, precisa voltar a ser discutida e os parlamentares contrários à medida devem se posicionar, sem usar de manobras regimentais para impedir a discussão.
Se o PL que impediria o bloqueio de navegação tráfego na banda larga fixa por atingido o limite de dados está trancado, o quão longe estamos de discutir regras na banda larga móvel que assegurem, de fato, o direito de acesso das pessoas?
A opção da Anatel de pedir às operadoras a liberação de tráfego para um aplicativo, o app sobre coronavírus do Ministério da Saúde, e não a flexibilização da regra da escassez artificial (ato de limitar artificialmente bens ou serviços que seriam praticamente ilimitados e cobrar por eles) significa tratar algumas pessoas como cidadãos de segunda classe, que não terão direito a tentar enfrentar este momento com trabalho remoto, falando em vídeo chamadas com a família, entrado em aulas online e pedindo comida e remédio pela internet. Precisamos garantir a internet por inteiro, a preços módicos, a todos os brasileiros e brasileiras ou teremos um fosso cada vez maior entre ricos e pobres.
*Marina Pita é jornalista e integra a executiva do Intervozes
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