Chega às livrarias de todo o país pela Editora Baioneta o livro “Carta no Coturno – A volta do Partido Fardado no Brasil”, escrito pelos jornalistas André Ortega e Pedro Marin.
A obra traz uma perspectiva histórica do poder militar desde o Estado Novo até o governo Bolsonaro, momento esse em que a caserna volta a ocupar postos-chave do poder central não por quarteladas, mas carreada por uma plataforma vitoriosa no voto.
Democrático? Segundo as regras do nosso sistema eleitoral, sim. Segundo o exercício prático desse poder neste e nos próximos anos, o tempo irá dizer.
Sobre o livro, conversamos com Pedro Marin, que é também editor e fundador da Revista Opera.
Acompanhe:
Qual é o ponto de partida e que motivações levaram à produção do trabalho recém-lançado, e como ele está estruturado?
O que motivou a gente a escrever o livro foram os processos de 2016, que levaram à derrubada da [ex-presidenta] Dilma Rousseff. Em 2016, a gente entende que houve um reordenamento do processo político no Brasil, e que esse reordenamento criou por si só uma série de contradições, que, no momento geopolítico atual, e também no cenário interno do Brasil, precisam ser resolvidas de alguma forma. Existem atores que querem resolver, que entendem que precisam resolver essas contradições.
O livro está estruturado em duas partes. A primeira, sou eu que assino, e a segunda parte, quem assina é o André Ortega.
De certa maneira, a primeira parte tenta descrever o que foi esse cenário de 2016. Descreve como nós pensamos esse cenário, descreve qual o cenário que nós temos atualmente, para, por fim, dar um indicativo do que nós achamos que pode acontecer, e o que nós consideramos que é um perigo para a vida política e social do Brasil, que é esse retorno dos militares. É o que nós chamamos, quase como uma homenagem a Oliveiros Ferreira [cientista social e jornalista], de retorno do “partido fardado”, que são os militares voltando ao front da política no Brasil.
A obra não titubeia ao vislumbrar a possibilidade concreta de que o país seja novamentecomandado pelos militares. Em linhas gerais, que elementos da atual conjuntura política reforçam essa hipótese?
Nós começamos a olhar para os militares e a imaginar cenários em que eles atuavam politicamente depois do impeachment da Dilma Rousseff. Houve alguns episódios nesse sentido: tuítes do General Villas Boas; aquele discurso que o então general Hamilton Mourão fez num encontro maçônico, falando sobre um golpe hipotético; a própria intervenção no Rio (que apesar de não ter sido uma coisa muito fora do comum, no sentido de que em outros lugares já havia acontecido intervenções, trazia declarações anti-republicanas de generais, desautorizando o presidente e o governador); e isso nos parecia muito estranho. Foi quando a gente começou a olhar para os militares de uma maneira mais ordenada.
A gente já pensava, a partir do processo do impeachment, que os militares poderiam se apresentar como uma saída frente a um cenário em que as instituições e os atores políticos “tradicionais” de até então começavam a se digladiar publicamente, que é uma situação de decisão pela exceção.
Em 2018, efetivamente a gente tem um fenômeno que começou a fazer pensar aqueles que achavam que era uma loucura falar no retorno do poder militar, que foi justamente a eleição do Bolsonaro, com um vice-presidente militar, com bases eleitorais muito fortes nos militares.
Quando ele assume o cargo, tem uma frase para o Villas Boas (que até então era considerado por muitas pessoas como um general democrata e coisas do tipo) em que ele diz basicamente: “olha, o que eu e você, Villas Boas, conversamos, morre no túmulo”.
Aquelas pessoas que consideravam uma loucura isso começam a falar “não, peraí, pode ser que realmente os militares sejam uma força política que vá ressurgir, que vá competir com os outros atores políticos, e que, podendo competir, pode se consolidar. E essa é a nossa tese.
Se o partido fardado vai voltar ou não, se ele vai se consolidar por completo, se ele vai se consolidar abertamente ou não, isso tudo são questões que estão em aberto. O que não está em aberto é que se ele não se consolidar, é porque ele não quis, ou porque não teve audácia de dobrar seus inimigos. Mas o fato de ele estar numa posição em que pode ter essa audácia já é um motivo de alerta, e já é o alerta que nós fazemos no nosso livro.
Num momento mais inicial da gestão de Bolsonaro, vimos por diversas vezes a rota de colisão estabelecida entre o guru Olavo de Carvalho e os militares. Depois disso, vemos Olavo preferindo uma postura assumidamente mais alheia aos fatos políticos do país, e, na outra ponta, os militares cada vez mais presentes em postos-chave. Que consequências isso tem para a burocracia institucional brasileira?
O que a gente tem pensado até o momento é que, apesar de tudo, o Olavo de Carvalho não é bobo, ou não é muito bobo pelo menos. Ele fez esse cálculo que a gente fez, né? Percebeu que realmente os militares estavam numa posição em que eles poderão chegar a ter muito poder, poderão tutelar o presidente, poderão reafirmar as suas posições, e o Olavo de Carvalho, como um ator interessado em fazer exatamente isso no governo (ainda que não faça parte do governo), entrou em rota de colisão com os militares.
Houve essa colisão entre esses dois grupos, e apesar de um deles ter sofrido baixas, muito provavelmente essas baixas foram negociadas, e acabou que esse grupo dos militares se mostrou vitorioso nessas pequenas escaramuças. Muita gente dizia o contrário, né? Diziam “meu Deus, mas os militares foram humilhados!”. Os militares podem até ter sido publicamente humilhados, mas no que se refere a ter postos-chave, no que se refere a manter a presença de militares dentro do governo, eles não sofreram baixa alguma. Caiu um, subiu outro.
Como avalia até aqui a conduta do vice-presidente, General Hamilton Mourão? Por diversas vezes, vemos elogios à figura e ao temperamento dele, muito diverso daquilo que é mostrado diariamente por Jair Bolsonaro?
Eu acho que muitas pessoas já notaram, mas é sempre bom notar mais uma vez: o general Mourão teve uma postura muito interessante, porque se em 2017, 2018, era conhecido por ser um general que falava tão duramente, falava coisas que às vezes eram lidas como deploráveis (um exemplo disso foi justamente o que falou naquele encontro maçônico), assim que o general toma posse como vice-presidente, a figura pública dele muda, e ele começa a parecer uma pessoa razoável, moderada, que fala com a imprensa alegremente, que atende a imprensa, mesmo que tenha suas próprias posições, mas uma pessoa muito diferente do que é o presidente da República.
O que me parece é que o vice-presidente Mourão está a todo momento se oferecendo como uma alternativa a um presidente o qual muitas pessoas (inclusive que votaram nele, apoiadores) começaram a ver como destemperada, que fala coisas absurdas.
Talvez seja até para complementar o presidente, mas me parece estranho, considerando o que tem sido a trajetória do Brasil nos últimos anos, um general que busca tanto a mídia, que busca tanto estar sob os holofotes, e que se posiciona de maneira tão diferente, muitas vezes com posições até contrárias ao presidente e ao núcleo mais duro do presidente.
Nomes do governo não se constrangem na defesa por uma revisão dos livros de história, que estabeleça uma nova versão dos fatos ocorridos nos 21 anos de ditadura militar, agora, na perspectiva dos militares. Você vê condições disso prosperar?
Sim. Infelizmente. Nós sabemos que os chamados “civis” do governo, essa ala que está mais próxima do presidente (a ala mais ideológica), tem interesse nisso. Tem muito interesse. E infelizmente nós sabemos também que no fim das contas a visão dos militares sobre essa ala não é tão diferente quando se trata do período da ditadura militar e do golpe de 1964.
Existe no livro inclusive um ensaio que dá um pouco de dimensão dessa questão ideológica, dessa revisão da história, de eles usando a história como arma, que trata justamente da biblioteca do Exército, a editora oficial do Exército. Recebe financiamento público para publicar seus livros, e tem uma série de publicações sobre o golpe dos governos militares que muitas vezes beira o insano. São efetivamente posições que estamos acostumados a ver em sites “radicaloides”, mas lá estão numa editora oficial do Exército da nossa nação.
Então, infelizmente, eu acho que sim, essa visão pode receber muito financiamento, pode se tornar uma versão oficial do governo, mas eu me recuso a acreditar que apesar de tudo isso ela se torne uma visão hegemônica na sociedade, porque pessoas comuns, pessoas que só queriam começar a sua vida na década de 60, na década de 70 (freiras, estudantes que não estavam interessados em política, trabalhadores comuns), eles se lembram muito bem do que era o clima, do que era a sua mãe dentro de casa falando que não era para falar de política, que “tome muito cuidado”… Eles sabiam muito bem qual era o clima de tensão que se abatia sobre a nação, apesar de não serem – como alguns dos nossos militares chamam – terroristas, apesar de não estarem na luta armada, apesar de serem pessoas normais, tentando construir a sua vida, essas pessoas se lembram muito bem de que havia um clima de tensão muito forte no ar, e esse clima de tensão era instaurado pelo governo. As pessoas não tinham medo de tomar posição falando mal de guerrilheiro na rua, mas tinham muito medo de falar de governadores biônicos, tinham muito medo de falar de políticos, e até hoje a gente observa isso. Às vezes, você vai falar com uma pessoa de mais idade sobre política, e ela fica “não, não fala de política, não é bom falar dessas coisas”, ou então você está falando dentro de casa, e a pessoa fala “não, fala mais baixo, o vizinho vai ouvir”. Eu acho que o medo fala muito alto, e ele fala no coração de muita gente que lembra desses tempos.
Como tem acompanhado o recrudescimento da violência do Estado brasileiro contra moradores periféricos?
A gente tem visto casos muito absurdos. Isso de certa forma é uma continuação do que vinha até então. Ainda que isso possa ter sentidos políticos novos – com um governo que é novo, com um clima social que também é novo no país -, eu não posso fazer de conta que isso não acontecia, e que não acontecia com uma brutalidade se não tão grande, muito próxima desde sempre. Aconteceu nesses últimos 15 anos sem maiores problemas. Nesse sentido, eu não faço uma leitura política nova, porque efetivamente não é um fato novo. No entanto, o que me impressiona não é tanto o recrudescimento da repressão policial, mas o fortalecimento das milícias. Primeiro, e em muitos casos, um ressurgimento de alguns agrupamentos, e, por fim, uma defesa dessas milícias.
É muito interessante a gente tentar notar esse fato pensando no exemplo da Colômbia, do que foram os grupos paramilitares, do que eles são até hoje. Eu acho até irônico que muitas pessoas corram para fazer comparações entre o governo Bolsonaro e entre, por exemplo, o governo Chávez, ou o governo Maduro, ou até pensem em fazer comparações tão longínquas quanto com a Revolução Chinesa, mas não se atentem à Colômbia, que tem uma configuração que pode muito bem servir ao Brasil, inclusive num momento em que o Brasil começa a se voltar para os Estados Unidos.
Que leitura faz das intervenções policiais em atividades da sociedade civil, como vimos recentemente em uma reunião de professores em Manaus no fim de julho e, mais recente ainda, em um encontro de mulheres do PSOL, na capital paulista?
Infelizmente, essas questões não estão contempladas de uma maneira muito concreta no livro, mas existem algumas coisas que eu acho que a gente não pode deixar de notar numa leitura estratégica do que significam.
A primeira coisa de fato esperada num governo com o presidente que a gente tem, e também num governo que está rodeado de militares, com um discurso anticomunista e antissocial muito forte, era um clima social em que a repressão ao que é visto pelo governo como inimigo se tornasse uma coisa mais corriqueira.
O segundo ponto é que quando efetivamente se faz esse tipo de coisa, se está jogando, se está vendo até onde se pode ir, se está medindo a capacidade de reação desses agrupamentos que são feitos alvo, se está vendo também como a sociedade vai reagir, como a mídia vai reagir. É um jogo de aproximações sucessivas, como diria o General Mourão no evento maçônico, em que eles andam um pouquinho, veem como está o clima, de repente até dão um passo atrás, tentam por outro caminho. Estão vendo como as pessoas reagem, qual é a reação a seus desejos repressivos.
O terceiro elemento, que nos levou a pensar no partido fardado, é o elemento da inteligência militar. A gente sabe que com o governo Temer houve uma reorganização do Gabinete de Segurança Institucional. Essa organização foi tocada também por um general, o Etchegoyen, que deu poderes muito grandes para a inteligência do Exército, que reorganizou todo o gabinete num grande guarda-chuva em que eles tomam parte e tem um papel muito forte.
Nós não achamos que o Exército tenha que ser dissolvido. Nós não temos problema nenhum com os militares. Meu avô inclusive foi soldado, serviu durante a Segunda Guerra (não chegou a embarcar, mas chegou a ir para Fernando de Noronha). Respeitamos muitas coisas, respeitamos o senso de honra que eles têm. No entanto, nós consideramos que efetivamente os militares devem estar submetidos ao povo, e portanto devem estar submetidos àqueles que o povo elege. Não acho que eles possam cumprir essa função de servir ao povo achando que na verdade eles representam a alma do povo, ou representam o baluarte da nação, como infelizmente o Marechal Deodoro da Fonseca certa vez disse, e como uma infinidade de figuras pensava. Eu não creio que eles possam fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Ou o povo estará dentro do coração deles, ou eles pensam que são o coração do povo, e eu não acho que eles são o coração do povo. Eu acho que, para citar o nosso último imperador, o Exército não é a nação.
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