Desde 2015, o Intervozes vem apontando o papel decisivo dos grandes meios de comunicação do país na construção do golpe que derrubou a ex-presidenta Dilma Rousseff (PT). Denunciamos a construção da narrativa única, que criminalizava de forma seletiva alguns partidos, o vazamento também seletivo de áudios e informações sigilosas da Operação Lava Jato e a própria criminalização da política. Bastou Michel Temer assumir, ainda como interino, para que as benesses aos seus aliados no setor de comunicação e fossem confirmadas num cenário de “uma mão lavou a outra”.
Houve benefícios diretos ao setor da radiodifusão comercial, com aumento de verbas publicitárias e anistia para irregularidades e uma investida feroz contra a comunicação pública e as mídias alternativas. No campo das telecomunicações, o lobby empresarial, que busca a desregulação do setor, encontrou eco no governo golpista. As políticas de promoção do acesso à internet, já fragilizadas, foram descontinuadas, e se multiplicam aos montes projetos de lei que tentam revogar conquistas importantes no campo dos direitos digitais, com ameaças ao Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014).
Aos amigos, tudo!
Em 2016, como primeiro ato para beneficiar os aliados, Michel Temer abriu as torneiras para gastos com propaganda. À época, em comparação com o mesmo período do ano anterior, a Revista Época teve um aumento de 1088%; a IstoÉ, que concedeu a Temer o prêmio de “Homem do Ano”, viu ampliar em 850% os recursos federais. Do mesmo modo, Globo, Band, Veja e Folha de S. Paulo receberam, na gestão Temer, mais verbas de publicidade do Governo Federal. E com as redes sociais não foi diferente: grupos controladores do Twitter e Facebook também receberam mais recursos.
É importante lembrar também o episódio singular da entrevista que Michel Temer deu ao Silvio Santos, apresentador e proprietário do grupo SBT. Numa relação de absoluto proselitismo, Temer defendeu, sem pudores, a Reforma da Previdência. Aliás, o governo gastou com publicidade pró-reforma, entre janeiro de 2017 e fevereiro de 2018, cerca de R$ 110 milhões, o que é um escândalo se os valores forem vistos à luz do discurso da contenção de gastos públicos, amplamente reforçado pelo governo.
Mas não foi somente a partir da destinação de mais dinheiro que Temer fortaleceu os grupos comerciais de comunicação. Em termos regulatórios e normativos, um tapete vermelho foi estendido para o oligopólio. É o que aconteceu no caso da Portaria 5774 de dezembro de 2016, que flexibilizou as sanções administrativas aplicadas contra radiodifusores que cometeram infrações.
PublicidadeCom ela, todas as emissoras e canais de rádio e TV comerciais descumpridoras da lei passaram a ter a possibilidade de converter a pena de cassação da licença em multa. Anteriormente, um canal de rádio ou retransmissora de TV perderia esse benefício caso somasse 20 pontos no rol de infrações praticadas, porém a partir da Portaria 5774, o limite foi estendido a 80 pontos, dificultando a já remota possibilidade de cassação da licença de empresas infratoras.
Em 28 de março de 2017, protagonizando uma cena que lembra o trecho “[…] mas as pessoas na sala de jantar, essas pessoas na sala de jantar”, cantado pelos Mutantes, dezenas de radiodifusores se (re)uniram no Palácio do Planalto para comemorar a sanção presidencial da Lei nº 13.424/2017, resultante da MP 747.
Apelidada pelo movimento pela democratização da comunicação de “Boing da Radiodifusão”, a MP 747, editada ainda em 2016, e sancionada como lei quatro meses depois de seu envio ao Congresso Nacional, anistiou as emissoras que perderam o prazo para renovação das concessões, ampliando os prazos de solicitação de renovação dessas mesmas concessões.
A legislação excluiu também a previsão de cumprimento de “todas as obrigações legais e contratuais” e o atendimento ao “interesse público” como requisitos para que as empresas possam ter direito à renovação das outorgas. Essas medidas justificam o fato da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert), à época, ter divulgado uma nota afirmando ser a MP 747 “a maior vitória para o setor de radiodifusão dos últimos 50 anos”.
Em 2018, a mesma Abert também comemorou a sanção da Lei nº 13.644, que flexibilizou o horário de veiculação do programa A Voz do Brasil, estendendo o horário para o intervalo entre 19h e 22h (e não mais até 20h, como era desde 1938, quando ainda tinha o nome de A Hora do Brasil). Vale lembrar que, ainda em 2014, a Abert lançou a campanha “A voz que eu quero ouvir”, numa ação de lobby para aprovação da medida, que tramitou por cinco anos no Congresso Nacional.
As ações de favorecimento aos grupos comerciais de comunicação vieram acompanhadas também de uma política de desmonte do próprio Ministério das Comunicações, que foi extinto enquanto pasta e incorporado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações (MCTIC), comandado pelo ministro Gilberto Kassab (PSD). A extinção, realizada poucas horas depois de Temer assumir como interino se deu pela edição da MP 726.
Silenciando vozes
Na medida em que se fortalecia o monopólio privado dos grandes meios de comunicação no Brasil, ampliando o poder discursivo dos grupos que sempre comandaram o país, avançava-se também no silenciamento de vozes dissonantes, por meio de investidas contra a comunicação pública e alternativa.
Com apenas cinco dias de governo interino, Michel Temer demitiu o então presidente da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), Ricardo Melo, e nomeou Laerte Rímoli como seu substituto, decisão que foi revertida por meio de liminar no Supremo Tribunal Federal (STF), em maio daquele mesmo ano, mas que se tornou definitiva quando da edição da MP 744.
Essa MP alterou de forma significativa a EBC ao modificar o artigo 12 e revogar os artigos 15, 16 e 17 da Lei nº 11.652/2008, que criou a empresa. A principal modificação foi a extinção do Conselho Curador e de suas atribuições. Além de deixar a sociedade civil fora da governança da empresa, a extinção jogou uma pá de cal num dos pilares da comunicação pública: a gestão democrática e participativa. As alterações também acabaram com a inviolabilidade do mandato do diretor-presidente da EBC – que se renovava em anos diferentes da renovação do mandato da Presidência República – condição necessária para a autonomia editorial em relação ao governo.
A MP também elevou o Conselho de Administração, controlado pelo Poder Executivo, à condição de órgão superior da EBC e aumentou o número de membros, que passou de cinco para sete, sendo seis do governo federal e uma representação dos trabalhadores, indicada pelo quadro de funcionários. E as políticas de desmonte da empresa pública seguiram com cortes orçamentários, suspensão de programas, demissão de funcionários, mudança na linha editorial, que passou a ter um tom mais governamental do que público, esvaziamento do Comitê Editorial de Jornalismo e censura a muitos profissionais.
Ainda no quesito silenciamento, Temer determinou a suspensão do patrocínio da Caixa Econômica Federal ao 5º Encontro Nacional de Blogueiros e Ativistas Digitais, em Belo Horizonte, e cortou os contratos entre organismos da administração direta e indireta do Governo Federal com microempresas de comunicação, a exemplo do Congresso em Foco, Carta Maior, Fórum, Observatório da Imprensa, Diário do Centro do Mundo, dentre outros veículos. Vale ressaltar que os valores repassados a esses meios representavam apenas 0,6% do orçamento da Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom/PR) destinado à publicidade no ano anterior.
Também no propósito de sufocar quaisquer possibilidades de expressão da diversidade e do pluralismo, Temer revogou o Plano Nacional de Outorgas (assinado por Dilma Rousseff em abril de 2016) e suspendeu os editais relacionados, que pretendiam ampliar a criação de rádios comunitárias e educativas; e determinou a paralisação da apreciação e votação de mais de 500 outorgas de rádios comunitárias.
Portas abertas à desregulação
Enquanto os países desenvolvidos procuram regular serviços essenciais, objetivando que a oferta desses não fique refém de interesses apenas comerciais, o que se viu no Brasil nos últimos dois anos, foi uma tentativa de desregular totalmente alguns setores estratégicos, entre eles, o de telecomunicações, com a investida pela aprovação do PLC 79, que modifica a Lei Geral de Telecomunicação – LGT (Lei nº 9.472/1997). E o pior tendo a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) – que deveria ser responsável pela fiscalização do serviço e cumprimento das obrigações pelas empresas – operando descaradamente pela aprovação do projeto.
Dentre as mudanças mais significativas do PLC – que modifica pelo menos 10 artigos da LGT de 1997 – está a alteração dos contratos de concessão para autorização, podendo esses ser, a partir daí, prestados exclusivamente em regime privado. Esta mudança pode significar um verdadeiro apagão digital para o país, na medida em que o regime privado exime as empresas fornecedoras do serviço de algumas obrigações, tais como garantir a universalização do serviço, sua continuidade sem interrupção e as chamadas tarifas módicas, com valores acessíveis às classes mais populares.
Além de a desregulação do setor contribuir para aumentar a desnacionalização do setor, considerando estratégico, o PLC 79 ainda repassa às operadoras um patrimônio de R$ 100 bilhões – avaliação do Tribunal de Contas da União (TCU) – em bens públicos como prédios, redes, cabos etc. de propriedade da União, cedidos em concessão.
Somado a isto, o principal órgão de governança multissetorial da internet brasileira, o Comitê Gestor da Internet (CGI) sofreu inúmeros ataques ao longo de 2017, quando Michel Temer lançou uma consulta pública para alterar a composição, o processo de eleição e as atribuições do órgão. Tudo com o objetivo de limitar a atuação da sociedade e do próprio Comitê. As medidas de austeridade, como a aprovação da EC 95, os cortes e contingenciamentos no orçamento também impactaram no órgão. Para se ter ideia, as Câmaras de Consultoria que compõem o CGI não se reuniram ao longo de 2017.
Mobilização social impede mais retrocessos
Como uma espécie de freio mínimo aos retrocessos no setor nos últimos dois anos, vale citar duas importantes e parciais conquistas, frutos da mobilização articulada da sociedade civil e da incidência junto aos poderes constituídos: o parecer da Procuradoria Geral da República (PGR) pela inconstitucionalidade de políticos serem concessionários de emissoras de rádio e TV e a aprovação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).
Autoridade de Proteção de Dados está nas mãos do Congresso
Às vésperas do final do mandato de Michel Temer, a PGR protocolou junto ao STF seu parecer relativo à ADPF 429, afirmando a inconstitucionalidade da participação de políticos como sócios de empresas de radiodifusão. A ADPF 429 foi protocolada em 2016, pelo governo Michel Temer, por meio da Advocacia Geral da União (AGU) e solicitava ao STF a suspensão das decisões judiciais que estavam sendo tomadas nos estados, pela cassação de concessões de empresas que mantém políticos como sócios.
Em outros termos, uma tentativa escancarada do governo golpista de apoiar cerca de 40 parlamentares alvos de processos em seus estados por manterem concessões de rádio e TV – à revelia do que diz o artigo 54 da Constituição federal.
Esta é uma conquista importante para a sociedade brasileira, que há décadas vive refém de políticos que controlam meios de comunicação em diferentes estados e com isto mantém também o controle da política e da opinião pública.
Outra conquista foi a aprovação da LGDP em 2018, em maio pela Câmara e em julho pelo Senado. Ela cria um importante arcabouço legal de garantia da privacidade e proteção de direitos fundamentais dos cidadãos e cidadãs brasileiras e disciplina as possibilidades de tratamento de dados pessoais, tanto pelo poder público quanto pelo setor privado.
Mas como previsto, LGDP foi sancionada com vetos pelo presidente Michel Temer, o que pode comprometer a eficácia da legislação. Uma das preocupações diz respeito à independência da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), que terá atribuição de fiscalizar o cumprimento da nova legislação e punir os infratores. Temer publicou na última sexta-feira, 28 de dezembro, MP que criou a ANPD, mantendo a cargo do presidente da República a prerrogativa de indicar a diretoria do órgão – fato que já havia sido bastante criticado pelas entidades e organizações sociais.
De um modo geral, com as medidas implementadas por Temer ao longo desses dois anos e oito meses, apenas a Abert e o conjunto dos grupos privado-comerciais de comunicação e telecomunicações têm razões para celebrar. Para a imensa maioria da população brasileira, marcada pela diversidade de vozes, cores, raças, identidades, gêneros, o período Temer representou, não apenas na área das comunicações (mas também nela), a paralisação de conquistas sociais e democráticas, fazendo retroceder em décadas o caminho de afirmação da comunicação como um direito humano.
Em 2019, com um cenário que se avizinha ainda mais difícil, de intensificação da retirada de direitos e de cerceamento da liberdade de expressão, apenas a intensa e permanente mobilização popular e social – como foi no caso da atuação da Coalizão Direitos na Rede pela aprovação da LGDP – poderá oferecer saídas para reverter o jogo.
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