Luiz Cláudio Cunha*
(originalmente publicado no Sul21)
O fio da meada que localizou os restos do jornalista Julio Castro, uma das vítimas mais famosas da ditadura uruguaia, foi puxada por um jornalista brasileiro, também ex-preso do regime de Montevidéu. Flávio Tavares, correspondente em Buenos Aires do jornal O Estado de S.Paulo, ficou detido oficialmente seis meses no Uruguai, depois de passar 28 dias desaparecido, sequestrado e mantido quase um mês sempre algemado e vendado, acusado de recolher dados incômodos sobre sobre os cárceres do país. O Uruguai estava resignado com o sumiço sem pistas de Castro, desde que o Exército informara oficialmente ao presidente Tabaré Vasquez, em agosto de 2005, que o ex-diretor do semanário Marcha tinha sido enterrado, exumado, incinerado e tivera as cinzas espalhadas na região de Toledo, nas cercanias de Montevidéu.
O jornalista brasileiro estabeleceu o nexo decisivo com outro episódio importante na história uruguaia. Em 24 de agosto de 1976, o casal Gelman, Marcelo e Maria Cláudia, foI sequestrado em Buenos Aires e levado ao maior centro clandestino de tortura do Uruguai na Argentina: a Automotores Orletti. Em 13 de outubro, Marcelo foi executado e jogado no rio Tigre dentro de um tonel. Maria Cláudia, grávida, foi transferida para Montevidéu, onde nasceu Macarena em 1º de novembro. A mãe foi transferida para uma base militar, executada e desaparecida. O bebê foi entregue à família de um policial. O corpo de Marcelo só foi resgatado em 6 de janeiro de 1989. Em 2000, afinal, quando tinha 24 anos, Macarena foi identificada e se reencontrou com seu avô, o consagrado poeta Juan Gelman.
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Aqui, o depoimento exclusivo de Flávio Tavares:
“Três meses atrás tomei a iniciativa de me apresentar a um juiz em Montevidéu para depor no processo sobre o “desaparecimento” de Júlio Castro, então com 68 anos em 1977. Durante ininterruptas cinco horas e 45 minutos, do início da tarde até o anoitecer, contei em detalhes sobre um preso que nunca vi e que nunca me viu. Ambos estávamos de olhos vendados. Era chamado de viejo pelos guardas. Na noite anterior ao desaparecimento, ele estava agonizante a quatro ou cinco metros de mim, depois de ter sido torturado na imensa casona em que ambos estávamos sequestrados. Dei os detalhes de tudo, “ajudado” principalmente pelos três advogados de defesa dos militares implicados no sequestro.
PublicidadeAjudado? Mas, como? Para tentar me levar a contradições, fizeram-me mil perguntas minuciosas, tão detalhadas que o passado de julho-agosto de 1977 surgiu em minha memória como se eu estivesse presenciado tudo naquele exato momento do depoimento, há mais de trinta anos.
Sem saber quem eram os advogados dos militares, citei em meu testemunho o major José Nino Gavazzo , que aparentemente era um dos meus sequestradores. Todos riram com ironia quando seu nome apareceu numa das anotações que eu levava em meus bolsos. Na época, os EUA do Governo Carter tinham recusado visto a Gavazzo para fazer um curso de “adestramento anti-subversivo” por lá.
À saída, após todos assinarem as 20 laudas do meu depoimento, dei a mão aos advogados dos militaress e lhes indaguei o nome. Um dos três advogados dos militares era a doutora Gavazzo, filha do major Nino Gavazzo, que hoje está preso…
Ao juiz, sugeri que relacionassem a situação de Júlio Castro às de outros “desaparecidos” no Uruguay, como a filha do poeta argentino Juan Gelman, A partir disso, chegaram ao quartel do Batalhão nº 14 onde cavaram e encontraram, dez dias atrás, os restos de Júlio Castro.
A TV canal 12 de Montevideu voltou a exibir, dois dias atrás, um pequeno mas conciso depoimento meu, gravado após as quase 6 horas do meu depoimento, em que dizia “ter absoluta certeza que o moribundo que esteve ao meu lado” era Júlio Castro. Foi a única menção ao meu depoimento que apareceu no Uruguai. Os jornais nada publicaram. Somente a TV e uma rádio de lá, que também me entrevistaram.
Quando os advogados me pressionaram para indagar por que eu tinha tanta certeza de que “o velho” era Julio Castro, se eu estava de olhos vendados, lembrei o episódio da localização do nazista Adolf Eichmann em Buenos Aires. O Serviço Secreto de Israel enviou em 1958 à Argentina uma equipe para averiguar a informação de que Eichmann vivia em tal rua, número tal no bairro de Olivos. Mas os agentes de Israel se decepcionaram com o informante: um alemão anti-nazista, cego, que nunca tinha visto o Eichmann na Argentina? Indagaram por que ele tinha tanta certeza, e o alemão-cego respondeu: “Pelo método dedutivo, o único que jamais falha”.
Os israelenses não acreditaram no cego e só dois anos depois recomeçaram a investigação, pressionados pelo mesmo alemão-cego. Todos os dados eram corretos e coincidiam. O método dedutivo não tinha falhado e Eichmann foi finalmente localizado, detido e levado clandestinamente a Israel, onde foi julgado e enforcado.
Tive de enfrentar mil dificuldades para ir ao Uruguai, onde não podia pôr os pés, pois fora expulso de lá em janeiro de 1978 e minha ordem de expulsão nunca foi revogada. Insisti em que a revogassem, não consegui, mas fui assim mesmo, após receber uma declaração do Ministro da Justiça de que não havia “obstáculos legais” à minha entrada, permanência e saída do Uruguai.
Paguei minha passagem e a estadia do hotel e me senti maravilhosamente bem, apesar do extenuante depoimento. Saí de São Paulo às 6 da manhã, troquei de avião em Porto Alegre e cheguei a Montevidéu duas horas antes da audiência. Voltei tranquilo, revigorado. Fiz o que devia.
Flávio Tavares.”
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