Fábio Góis
Uma guerra entre servidores campeia os bastidores do Projeto de Resolução 96/2009, que visa promover a reformulação administrativa do Senado. Briga que, de quebra, ameaça as intenções de enxugamento da megaestrutura e as ações moralizadoras. Em contraposição ao caráter público das deliberações da subcomissão especial criada com esse fim, no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), as disputas são silenciosamente travadas entre os mais diversos níveis da hierarquia administrativa. Redução de diretorias, cargos e funções comissionadas, respeito ao teto remuneratório, alteração de gratificações, equiparação de atribuições funcionais, para ficar só no quadro de pessoal, são alguns dos elementos de uma reforma que, seja qual for o resultado, já provoca sequelas na chamada Câmara Alta.
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Se também forem observados os efeitos da reforma sobre a estrutura de funcionamento do Senado, a insatisfação de servidores fica ainda mais evidente. Setores como a divisão de TV e o serviço de transportes, por exemplo, estão entre os que mais sofrerão alterações na hipótese de o texto elaborado (confira a íntegra) pelo senador-relator, Ricardo Ferraço (PMDB-ES), ser aprovado sem alterações. A TV Senado, por exemplo, ficaria impedida de levar adiante projetos de reportagem, programas especiais e documentários que requeressem viagens Brasil afora.
Já a opção do primeiro-secretário, Cícero Lucena (PSDB-PB), por aluguel de veículos oficiais – incluindo-se no pacote motoristas e manutenção, a cargo da locadora -, implicaria a venda da frota atual e a dispensa ou realocação de pessoal em outros setores. Integrante da subcomissão, Cícero vê redução de despesas na providência ? versão contestada, como o Congresso em Foco mostrou em maio passado, por um estudo produzido pela Coordenação de Transportes da Casa, órgão ligado à Secretaria de Serviços Gerais, outro departamento atingido pela reforma.
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Pressão pela reforma
Graças à celeuma gerada pelo escândalo dos atos secretos do Senado, em 2009, e à consequente pressão da imprensa e da opinião pública, restrições estruturais e funcionais se impuseram à administração da Casa – como maneira de deixar para trás a era Agaciel Maia (ex-diretor-geral) e João Carlos Zoghbi (ex-diretor de Recursos Humanos), apontados por comissão da própria instituição como dois dos principais responsáveis pela emissão dos documentos clandestinos ilegais. E foi justamente esse movimento em tese moralizador que provoca agora, sob a tutela da nova diretora-geral, Dóris Marize Peixoto, uma espécie de insurreição de servidores efetivos.
Um ex-diretor do Senado que prefere não se identificar disse ao Congresso em Foco que o nível de insatisfação chegou ao limite. Segundo o servidor, cogita-se inclusive uma paralisação de funcionários concursados que, segundo ele, pagam agora pelas irregularidades praticadas por outros.
“A situação está insustentável. O que estão fazendo com os servidores efetivos é uma coisa absurda. Chega a ser desumano”, desabafou o ex-diretor, para quem as novas determinações da Diretoria Geral e da Primeira Secretaria, espécie de prefeitura da instituição, têm “marginalizado” os efetivos em detrimento dos comissionados e terceirizados.
Dizendo-se ele mesmo vítima das restrições, o ex-diretor cita o exemplo da medida que limita a funcionários indicados por senadores – como efetivos e comissionados (não concursados) lotados em gabinetes parlamentares – o direito à utilização do estacionamento do Anexo I do Senado, uma das duas torres que formam o prédio do Congresso. A medida, formalizada pela Primeira Secretaria, foi comunicada por e-mail como complemento ao ato nº 3 do primeiro-secretário, de março deste ano. A mensagem eletrônica proíbe ainda que estagiários e terceirizados utilizem a área externa para estacionar (no local há área reservada à Secretaria Especial de Editoração e Publicações).
Contramão
Cícero Lucena e a Diretoria Geral bancam um voto em separado ao projeto de resolução que, a título de incremento remuneratório para efetivos, representará um ônus extra de R$ 4,9 milhões para a folha de pagamento do Senado. Trata-se do aumento das gratificações pagas a 385 servidores que, graças à função que desempenham, agregam ao salário bonificações chamadas “funções comissionadas” (FCs).
Caso a proposta vingue, quase R$ 44 milhões sairão anualmente do orçamento da Casa direto para os bolsos dos servidores – 314 dos quais passariam a receber R$ 2.949 de gratificação mensal, ao invés dos R$ 1.795 atuais, enquanto outros 71 receberiam R$ 4.103 de bônus (atualmente, R$ 2.949). A atual planilha de gratificações, mantida no relatório de Ferraço, registra gasto anual de R$ 38,8 milhões.
Noticiada em 16 de junho pelo portal de internet iG, a manobra é vista como resposta à redução de cargos prevista na reformulação administrativa. O relatório de Ferraço reduz ainda as funções comissionadas em 45% – atualmente, as FCs somam 2.072, número que cairia para 1.129. Por dois dias seguidos (quinta e sexta-feira da última semana), a reportagem procurou – e não teve retorno de – Cícero Lucena, membro da subcomissão, para explicar sua proposta. “Defendo a economia máxima, desde que a Casa tenha condição de funcionar”, declarou o senador, segundo o iG, apoiado pela cúpula administrativa.
Autonomia excessiva
O excesso de filigranas normativas, além da resistência de determinados setores e da morosidade das deliberações de senadores e diretores sobre o tema, tem contribuído para atrasar ao menos a apresentação de uma proposta final à subcomissão, antes da votação em plenário – apenas o voto em separado apresentado na última quarta-feira pelo senador Benedito de Lira (PP-AL) tem 217 artigos.
Ferraço considera que há uma relação “bastante estreita” entre senadores e determinados servidores “que se consideram donos do Senado” – realidade que teria emperrado até o momento qualquer tentativa de reformulação institucional. “Existe uma resistência natural, porque a reforma que estamos propondo reduz custo, determina de certa forma uma organização da Casa, onde tudo deve ser feito com planejamento e com autorização prévia”, destacou Ricardo Ferraço ao Congresso em Foco, dizendo preferir acreditar que “não há possibilidade” de a matéria não ser votada ainda neste ano.
Ferraço diz que o fato de a proposta prever apenas uma “unidade de comando” – o Conselho de Administração, que será responsável pelos assuntos de natureza administrativa, orçamentária, funcional e operacional -, dará fim à “autonomia” verificada em certos departamentos, o que traria insatisfação a esses setores. “Isso impede, ao meu juízo, uma administração com planejamento, com administração, com disciplina e com austeridade”, observou o peemedebista, lembrando que, graças à falta de controle, o Senado brasileiro gera um custo de R$ 3,3 bilhões ao ano ao contribuinte, enquanto o francês, por exemplo, custa R$ 1,1 bilhões.
Ferraço respondeu de maneira polida quando questionado pela reportagem sobre as ligações de seu correligionário de partido e presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), com a cúpula dos atos secretos defenestrada em 2009. “Eu tenho minhas convicções pessoais, e espero exercer meu mandato com muita coerência em cima dessas convicções. Devo satisfação à sociedade brasileira, ao contribuinte brasileiro e, sobretudo, à população do meu estado. Quando eu era candidato, as pessoas colocavam muito isso, dizendo ‘se você chegar lá, por favor, faça as reformas que são importantes'”, ponderou, lembrando que há outros colegas “estimulados e motivados” em fazer as mudanças.
“Áreas perdulárias”
A insatisfação de servidores efetivos é resultado, principalmente, das medidas recentes da Primeira Secretaria e da Diretoria Geral. A reportagem apurou que entidades como a Associação de Defesa dos Servidores Efetivos do Senado (Ases) chegaram a cogitar, nos bastidores, paralisação de atividades (leia a “carta aberta” da entidade a servidores, senadores e sociedade).
O Congresso em Foco procurou a Ases, mas não obteve retorno da diretoria, que evita falar sobre o assunto. “O bom cabrito não berra: se filia à Ases. Que berra por ele”, diz a espécie de lema registrado ao pé da página da Ases na internet. Para a entidade, servidores comprometidos com a ética e o bom funcionamento do Senado não podem pagar pelos desmandos de funcionários mal intencionados.
“O Senado precisa ser reinventado, refundado. Temos aqui gente que trabalha, que é séria, que se dedica”, comentou Ferraço, referindo-se ao descontentamento da Ases. “Mas eu acho que essa instituição, por todos os fatos que foram relatados, comunicados, denunciados, com o tempo se transformou numa organização perdulária em muitas áreas.”
O senador-relator disse ainda que aprovou apenas as emendas que não representavam impacto financeiro. “Na verdade, estamos recomendado redução de 36 secretarias para seis, estamos fundindo órgãos, fazendo o que as organizações modernas fazem, que é horizontalizar o seu organograma e fundir tarefas. E é preciso considerar que o trabalhador do Senado é muito bem remunerado, muito melhor do que a média de outros poderes e das instituições privadas”, acrescentou o parlamentar capixaba, para quem os próprios servidores, por receberem tão bem, deveriam colaborar com a reforma, “importante para a reputação e para a imagem da Casa”.
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