Henrique Ziller*
INTRODUÇÃO
Numa tarde muito agitada, quando no plenário da Câmara dos Deputados votava-se o salário mínimo, o presidente da CPI do Tráfico de Cebolas convocou uma reunião urgente e importante. Ela aconteceria em meio às negociações frenéticas que os líderes e representantes do governo faziam com cada deputado, individualmente, para aprovação do valor de R$ 151,00, contra a proposta de R$ 177,00 – valor este que “arruinaria as contas da Previdência e o País”, como várias vezes já fora ameaçado ao longo de tantos anos – e ainda viria a ser tantas outras –, daí porque as ofertas eram generosas, na lógica que, afinal, significa dar muito para pouca gente em vez de dar pouco para muita gente.
Para que os parlamentares pudessem se locomover com facilidade entre o local da reunião e o Plenário, ficou estabelecido que a reunião seria realizada no gabinete da liderança do PMBC. O chefe do gabinete era conhecido meu, de maneira que não tive maior dificuldade em entrar no gabinete, e mesmo na sala em que se realizaria a reunião – algumas vezes eu não conseguia ou não podia entrar.
Ao chegar à liderança do PMBC, portanto, foi-me permitido entrar na sala onde seria realizada a reunião, e os parlamentares, que já me conheciam de outras reuniões e das viagens das quais eu participara, não se importaram com minha presença. Entrei e sentei-me num pequeno sofá. A sala era muito pequena, e inadequada para reuniões daquele tipo. O pessoal da sonoplastia tentava instalar um gravador e alguns microfones, para que a reunião pudesse ser gravada. Dois taquígrafos tentavam conseguir um lugar no canto oposto àquele no qual eu me alojara.
Os parlamentares foram chegando aos poucos, e, num momento de descontração, como muitos outros que aconteceram no decorrer dos trabalhos da CPI do Tráfico de Cebolas, brincavam uns com os outros, contavam piadas, insinuando paqueras e flertes. No sentido oposto, um sentimento ruim começou a tomar conta de mim.
Como assessor de um dos parlamentares que fazia parte da CPI, nos últimos meses tinha convivido com todo aquele pessoal: parlamentares, assessores, taquígrafos, agentes da Polícia Federal, membros do Ministério Público, enfim, todos aqueles que participavam dos trabalhos da CPI, como viagens, reuniões e audiências. Além desses, havia ainda os funcionários do departamento de Comissões Especiais da Câmara dos Deputados.
Naquele momento, já fazia duas semanas que eu começara a escrever o esboço de um livro sobre minha vivência na CPI. Senti-me um pouco mal. Continuei tomando minhas notas por algum tempo, até chegar à conclusão de que eu não poderia utilizar aquelas informações colocando-as em um livro. Eu havia ganho a confiança de algumas pessoas que me introduziram naquele convívio, e, por elas, havia sido aceito como alguém confiável.
Se fosse para escrever um livro narrando essa história, eu não poderia filtrar tudo aquilo que pudesse denegrir a imagem dos parlamentares, como Comissão ou individualmente, sob pena de fugir da realidade. Por outro lado, trazendo à luz informações sobre situações desconhecidas do público, e conhecidas por mim porque pude penetrar numa intimidade que me foi consentida, um sentimento de traição me fustigava.
O projeto foi, então, engavetado, ou melhor, pairou dormente nos arquivos do Word.
À medida que o tempo passou, e a CPI se distanciava, retomei o desejo de finalizar publicar o texto, mas ainda sob aquela acusação sombria da traição, conquanto já um tanto menos cruel. Isso ocorreu quando já se iam cinco anos da realização da CPI. Sentado na cadeira do computador, no escritório de minha casa, minha filha pulou no meu colo e perguntou o que eu fazia. Respondi que estava escrevendo um livro, a CPI do Tráfico de Cebolas.
– Mas que nome é esse, pai?
Eu expliquei um tanto que sem explicar. Ela sentou-se e desenhou a capa do livro. O título era: “O Tráfico das Cebolitas”. Diante do incentivo, decidi seguir adiante com o projeto, e, para me livrar das culpas, troquei todos os nomes, para que os leitores não pudessem identificar facilmente os protagonistas da história.
Retomei, assim, o projeto, e comecei a revisar o texto. Finalizei alguns capítulos. Mostrei os originais para alguns amigos. Mas, afinal, sem que houvesse nenhuma razão plausível para isso, o projeto foi novamente interrompido por um tanto de anos suficiente para deixar em nível bem mínimo minhas preocupações quintacolunistas.
No início de 2011, eu estava cansado. Faltava-me ânimo para trabalhar, para estudar, para qualquer coisa. Tive uma infecção que ficou sem diagnóstico por algum tempo, e que produziu quatro internações seguidas em hospitais. Quando estava me recuperando de uma das internações, em melhores condições, tomei a decisão de interromper algumas das inúmeras atividades que vinha desenvolvendo, e de retomar outras – entre elas, finalizar esse texto e dois outros que também estavam parados.
Terminar o livro foi uma sugestão soprada ao meu ouvido quando eu, sem condições de trabalhar e enfrentar o mestrado que fazia, resolvi me dedicar a uma tarefa que sempre planejava e não realizava: organizar os arquivos de meu computador. Ah, encontrei tanta coisa! Pude rever o texto, que me pareceu ainda tão interessante a ponto de me decidir por tentar finalizá-lo, nos momentos de bem-estar ao longo da recuperação de uma tal – finalmente diagnosticada – colangite.
Na narrativa que se segue, há algumas histórias que só eu presenciei, outras que presenciei junto com outras pessoas, e algumas que não presenciei, mas pude confirmar por fontes diversas. Na verdade, nada disso importa muito, pois esse é um livro de ficção, jamais houve uma CPI do Tráfico de Cebolas…
Os atores principais dessa história são os parlamentares – eles faziam as coisas acontecer. Todos os outros eram coadjuvantes. Obviamente, é sobre o comportamento e as atitudes deles que recai a maior parte da narrativa. No entanto, se nem naquele momento era minha preocupação registrar qualquer comportamento equivocado, ou mesmo algum escândalo, o passar dos anos já nos reservou tanta novidade que muitos daqueles procedimentos que suscitaram alguma objeção de minha parte, e de tantas outras pessoas, parecem inofensivos diante de fatos como a constituição da Comissão de Ética no Senado Federal para o ano de 2011.
Portanto, mais do que retratar a individualidade de um ou outro ator – o que, de qualquer maneira, acabou acontecendo – naquele interessante palco no qual atuou a CPI, a história a seguir poderá mostrar padrões que são mais importantes do que os comportamentos de cada um. Em meio aos detalhes do que presenciei, encontrei situações, procedimentos e comportamentos que confirmavam que não havia nada de novo debaixo do sol a cada dia de CPI. O que não significa que não houvesse coisas boas, pelo contrário, minha avaliação final vai exaltar o trabalho que se fez.
Há uma zona cinzenta entre a legitimidade e a ilegitimidade, entre o lícito e o ilícito, e muitos outros opostos como esses, e é nesse terreno que a maior parte dos acontecimentos se dá.
Em parte, penso que isso acontece porque o grande norte da atuação do parlamentar são as eleições. A meu ver, se aí reside um pecado, isso se dá principalmente por que essa agenda nunca é explicitada. Não penso que eles deveriam ter uma elevação tal que os fizesse encarar uma CPI apenas pelo bem que ela, em si, poderia produzir para a sociedade.
Em grande medida, é por causa de seu caráter marcadamente político – dentro do que se encontra o processo eleitoral – que uma CPI tem condições de produzir bons resultados. Se algumas artimanhas fossem deixadas de lado em favor de uma admissão mais explícita dos interesses políticos individuais dos membros da CPI, talvez os resultados pudessem ser ainda melhores – mas, isso não parece viável. Vale ressaltar, no entanto, que isso valia naquele tempo em que as CPIs eram de verdade, como foram a dos Correios e das Ambulâncias, entre outras, antes que fossem completamente abafadas pelo governo que, quando na oposição, fazia dela um instrumento efetivo de vivência democrática.
Na realização das reuniões, alguns parlamentares elaboravam suas próprias estratégias para conseguir a melhor divulgação da mídia. Como outros parlamentares também tinham suas próprias estratégias, eventualmente alguém saía perdendo! Mas, essa situação não predominava. Na maior parte das oportunidades, eles dividiram de maneira mais aberta o espólio que cada viagem – principalmente – deixava, permitindo que cada um sobressaísse em seu próprio estado.
Nas viagens para os estados, o foco das atenções recaía sobre aqueles que ali tinham suas bases eleitorais. Alguma disputa acontecia quanto ao espaço na grande mídia, que não respeita fronteiras estaduais. Havia bastante esforço para obter a atenção de TVs e jornais, mas sem grandes embates entre os parlamentares.
A maior parte das ações e reações que causavam estranhezas pareciam se relacionar, direta ou indiretamente, com essa desvinculação entre os reais intentos de cada um dos parlamentares e suas afirmações em público.
A CPI foi boa para o País. Mesmo com todas as suas idiossincrasias, como as que mencionei acima, em grande medida aquele grupo de parlamentares se deixou usar para uma boa causa. A despeito das agendas ocultas relativas aos interesses individuais, aquilo em que cada ator permitiu-se usar pela boa causa acumulou-se de forma a gerar resultados alinhados com o interesse público. Ainda que houvesse algum personalismo, e nem poderia ser diferente, a causa e seus resultados foram maiores do que os projetos individuais.
Alguns daqueles deputados, senão todos, devem ter sentido saudades da CPI. Assim como eu, que pude também participar e contribuir, e, no âmbito da minha competência, também me deixei usar por aquela causa.
Amanhã, o primeiro capítulo da novela política de Henrique Ziller.
* Auditor concursado do Tribunal de Contas da União (TCU), presidiu a União dos Auditores Federais de Controle Externo (Auditar), mantém o blog http://www.ziller.com.br/blog/ e preside oInstituto de Fiscalização e Controle (IFC).
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