Laura Tresca * e Marcelo Blanco **
Em uma época em que tudo é informatizado, a aprovação de uma lei que dê segurança a brasileiros e brasileiras sobre a forma como seus dados pessoais são tratados por governos e empresas deve estar entre as prioridades da agenda pública. A questão ganha ainda mais importância na medida em que grande parte da economia se desenvolve a partir da produção, armazenamento, processamento e manipulação de dados pessoais, em um processo que acontece muitas vezes sem o menor conhecimento de seus titulares.
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Atualmente, no Congresso Nacional, há três projetos de lei tramitando que dispõem sobre a proteção de dados pessoais. Em geral, eles visam regular as dinâmicas de consentimento entre os titulares dos dados e os responsáveis por seus tratamentos, estabelecendo normas claras de quando se pode compartilhá-los com terceiros, excluí-los ou transferi-los de país, entre outros pontos. Trata-se de práticas já usuais e que somente agora tornaram-se objeto de tentativas de regulamentação.
Nesse debate, um dos conceitos que vêm à tona é a chamada “autodeterminação informativa”. A expressão diz respeito ao direito de uma pessoa determinar se seus dados pessoais devem ou não ser analisados por terceiros, incluindo até mesmo, em alguns casos, o direito ao pedido de cancelamento de seus dados pessoais. Nesse caso, falamos de prerrogativas de indivíduos que desejam excluir suas informações de bases de dados de empresas ou governos com quem já não se possui mais relacionamento ou quando as informações já não atendem à finalidade da relação estabelecida.
O direito de requisitar o cancelamento de dados pessoais remete principalmente às relações entre instituições e pessoas físicas, desconsiderando o interesse público existente na seara dos dados pessoais. Tal direito, porém, não deve ser considerado como uma espécie de institucionalização do que convencionou-se chamar “direito ao esquecimento”.
Na experiência da ARTIGO 19, o “direito ao esquecimento” geralmente está relacionado a uma solução que, em algumas circunstâncias, permite a uma pessoa exigir dos buscadores on-line a desindexação de certos tipos de informações sobre si que aparecem como resultados de pesquisas por seu nome, incluindo aí notícias, artigos ou qualquer outro tipo de conteúdo que faça referência à pessoa e seus atos. Eventualmente, esse “direito” pode até mesmo ser “exercido” com solicitações para que os provedores de sites removam certas informações de seus bancos de dados.
Sob uma ótica mais ampla, para além do ambiente digital, o “direito ao esquecimento” pode ser considerado como um direito dos indivíduos de determinar por si próprios quando, como e em que medida as informações sobre eles são comunicadas aos outros, ou ainda como um “direito” que dá ao indivíduo maior controle das informações sobre ele, não se limitando somente aos seus dados pessoais. Algumas classificações o colocam como sendo parte do “direito à privacidade” mesmo que estejamos falando de uma informação que é, pelo menos em algum grau, pública.
São diversas as propostas legislativas no Brasil que buscam institucionalizar o chamado “direito ao esquecimento” de forma específica. Contam-se ao menos quatro que podem ter um desfecho em breve no Congresso Nacional, tornando possível que brasileiros e brasileiras solicitem a retirada ou desindexação da internet de conteúdos que lhe digam respeito.
O “direito ao esquecimento” mal interpretado
Para que se atinja o melhor resultado em termos legislativos, é preciso ter em mente que estamos falando de dois assuntos distintos, de forma que um projeto de proteção de dados pessoais não pode invocar para si a institucionalização do “direito ao esquecimento” e vice-versa.
Porém, para fins de operacionalização e por questões de aproximação, o que tem-se visto reiteradamente é o “direito ao esquecimento” sendo assimilado ao direito de cancelamento de dados pessoais.
Como dito anteriormente, o direito de cancelamento de dados pessoais refere-se a demandas de indivíduos que desejam excluir suas informações de bases de dados de empresas ou governos com quem já não se possui mais relacionamento ou quando as informações já não atendem à finalidade da relação estabelecida.
Por exemplo, ao deixar de contratar os serviços de uma operadora de telefonia, uma pessoa teria o direito de pedir que todos os dados coletados e armazenados sobre ela durante o período em que foi cliente da empresa fossem cancelados, já que não haveria mais nenhuma finalidade na manutenção e utilização de tais dados. Qualquer ação posterior da empresa sobre esses dados deveria contar com um novo consentimento de seu titular.
Fica claro então que o conceito de autodeterminação informativa tem a ver com um mecanismo de proteção da privacidade das pessoas em relações com outras pessoas ou instituições que envolvam a transmissão, alteração, armazenamento ou processamento de dados pessoais. Caso muito diferente da publicação de uma notícia, para citarmos um exemplo.
Apesar disso, a tendência de misturar “direito ao esquecimento” e “direito de cancelamento de dados pessoais” já pode ser observada em alguns países da América Latina. Na Argentina, México, Colômbia e Peru, leis de proteção de dados pessoais chegaram a ser utilizadas pela Justiça local ou por autoridades competentes para autorizar a indisponibilização de conteúdos on-line que mencionavam determinadas pessoas.
No caso mexicano, uma pessoa iniciou a ação pedindo a desindexação de conteúdo pelo fato de que resultados de pesquisas junto a mecanismos de busca on-line apresentavam denúncias contra si próprio por conta de favorecimentos ilegais que uma empresa de sua posse havia recebido do poder público. O episódio confirma receios sobre possíveis distorções e injustiças da aplicação do direito de cancelamento de dados pessoais em casos de “direito ao esquecimento”.
É preciso também ter em conta que uma lei de proteção de dados pessoais, na maioria dos casos analisados, não leva em consideração parâmetros que protegem o direito à liberdade de expressão, tais quais:
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expectativa razoável de privacidade:
Este conceito busca considerar se o indivíduo que solicitou a obstrução do acesso aos dados adotou conduta prévia de forma a perder sua expectativa de privacidade, como, por exemplo, se ele ou ela publicou opiniões on-line ou cometeu um crime, ou ainda se consentiu previamente na publicação de tais informações.
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danos graves:
Diz respeito ao fato de o indivíduo ter sofrido ou poder vir a sofrer danos comprovadamente acentuados ou irreparáveis à sua imagem ou honra caso o conteúdo permaneça online.
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domínio público:
Trata de casos em que o conteúdo remeta a ações que ocorreram em espaços de domínio público, como, por exemplo, uma foto tirada em uma praça pública. Outros exemplos que se encaixam neste tipo de situação são informações cuja publicação foi autorizada pelo indivíduo ou aquelas que retratem um crime cometido (ambas situações também previstas no conceito de “expectativa razoável de privacidade”).
Interesse privado versus interesse público
O que se viu no processo de elaboração das leis de proteção de dados pessoais nos países latino-americanos é que, raramente, houve um debate mais aprofundado que relacionasse decisões de remoção de conteúdo ao direito à liberdade de expressão e informação. Tal fato torna ainda mais evidente que aplicar o “direito ao esquecimento” buscando associá-lo a leis de proteção de dados pessoais é bastante inadequado.
O fato de uma informação dizer respeito a um indivíduo não implica que este tenha domínio total sobre a informação. Indivíduos não deveriam poder restringir acesso a informações sobre sua pessoa que tenham sido publicadas por terceiros, exceto quando tal informação for privada ou sua publicação não tenha qualquer tipo de justificativa legítima.
Em outras palavras, uma informação sobre um indivíduo pode igualmente pertencer ao público, que não pode ser impedido de acessá-la. A ideia de que um indivíduo possa ter controle absoluto sobre uma informação ignora o fato de que existe um direito coletivo a acessar, receber e disseminar material que esteja legitimamente em domínio público.
Assim, caso o “direito ao esquecimento” se torne aplicável por meio do simples acionamento do direito de cancelamento de dados – que por sua vez venha a ser previsto em uma lei de proteção de dados pessoais –, uma série de irregularidades poderá ser cometida, já que se tornaria muito simples a indivíduos interessados em tornar inacessíveis (ou menos acessíveis) fatos indesejados a seu respeito no ambiente virtual realizarem este tipo de operação. A expectativa é que principalmente figuras públicas, como políticos, façam uso desse expediente de forma abusiva, minando o interesse público.
É necessário afirmar que, se equipararmos o cancelamento de dados pessoais ao “direito ao esquecimento”, estaremos estendendo o escopo de aplicação das leis de proteção de dados pessoais a um tema para o qual elas não tiveram o propósito de abordar quando elaboradas, ignorando ainda uma série de questões, sobretudo as relativas ao direito à liberdade de expressão e de informação, e criando brechas na lei para o ocultamento de informações de interesse público. Mais do que isso, o equilíbrio entre privacidade e liberdade de expressão será rompido, de forma que o valor da vontade individual será sobreposto aos interesses da coletividade na informação pública.
* Laura Tresca é coordenadora do Programa de Direitos Digitais da ARTIGO 19
** Marcelo Blanco é assistente de projetos no mesmo programa