Bruno Moura * e Fábio Góis
Um manifesto subscrito por procuradores, juízes e outros operadores do Direito contra o fim da prisão após condenação em segunda instância foi protocolado no Supremo Tribunal Federal (STF), nesta segunda-feira (2), com 5.048 assinaturas. Até ministros de tribunais aderiram à iniciativa, concebida em sintonia com as novas tecnologias: o texto do documento começou a ser escrito na noite da última quarta-feira (28/mar) em um grupo de WhatsApp que reúne promotores de todo o Brasil, a partir de um rascunho do promotor do Distrito Federal Renato Barão Varalda. Entre os signatários estão o ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot e o procurador e coordenador da Operação Lava Jato Deltan Dallagnol.
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Na prática, a nota é uma forma de pressão contra uma nova mudança de entendimento no STF a respeito do momento cabível para a prisão de condenados que estejam recorrendo em liberdade. O estopim para a retomada da discussão no STF foi o efeito político da condenação do ex-presidente Lula em segunda instância. Pré-candidato à Presidência da República, o petista teve a pena imposta pelo juiz Sérgio Moro, na primeira instância, aumentada em segundo julgamento no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), sediado em Porto Alegre.
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O TRF-4 adota como praxe autorizar a prisão de condenados em segunda instância e que não tenham mais direito a recurso no tribunal, caso de Lula. Caso o Supremo mantenha o entendimento firmado em outubro de 2016, quando decidiu pela prisão depois da segunda instância por seis votos a cinco, Moro pode decretar a prisão de Lula no mesmo dia.
A grande questão que os promotores e juízes apresentam é o impacto em outros casos com a nova mudança de entendimento no STF. Eles afirmam, inclusive na nota, que “a mudança da jurisprudência, nesse caso, implicará a liberação de inúmeros condenados, seja por crimes de corrupção, seja por delitos violentos, tais como estupro, roubo, homicídio etc”.
Por outro lado, opositores da antecipação da pena consideram um erro grave a reinterpretação do conceito de presunção de inocência em detrimento do dispositivo constitucional pertinente (artigo 5º, inciso 57 da Carta Magna). “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, diz a norma vigente no Título I (“Dos direitos e garantias fundamentais”), cláusula pétrea do texto constitucional. Advogado de Lula, ex-presidente do STF e primo de terceiro grau da atual presidente da corte, Cármen Lúcia, Sepúlveda Pertence a visitou recentemente e tem usado seu trânsito para fazer prevalecer esse entendimento.
De um lado e de outro, manifestações são esperadas para os próximos dias. Amanhã (terça, 3), grupos como o Vem pra Rua têm mobilizado as redes sociais a favor da prisão em segunda instância, com movimento nacional previsto para ter início às 18h. Já o defensores de Lula e da prisão apenas após trânsito em julgado também se organizam e, nesta segunda-feira, promoveram uma série de atividades com a militância petista, espalhando nas redes a hashtag #Lulalivre. Para o dia do julgamento, ambos os grupos prometem ocupar as cercanias do STF.
De 30 a 5 mil
“Rapaz, eu pensei que seriam só umas 30 [assinaturas]”, confidenciou à reportagem um dos organizadores da nota técnica divulgada, depois ratificada pelos demais membros do Judiciário e do Ministério Público. O manifesto é reforçado por outro, do Fórum Nacional de Juízes Criminais (Fonajuc), e vem a público na esteira das mobilizações que, em curso há alguns dias, adentram a semana do julgamento de um habeas corpus preventivo ajuizado no STF pela defesa do ex-presidente Lula, condenado em segunda instância em um dos processos da Lava Jato. Essa deliberação está prevista para a próxima quarta-feira (4).
Mestre em Ciências Criminais pela Universidade de Lisboa, Varalda estudou no mestrado a restrição ao princípio da presunção de inocência no controle do crime organizado, exatamente um dos pilares que sustentam a argumentação da nota. Se o texto era, no princípio, uma espécie de resposta à nota encabeçada por entidades como a Associação Brasileira dos Juristas pela Democracia, que defende a revisão do atual entendimento do STF (prisão em segunda instância), agora se transformou em um manifesto nacional de promotores, procuradores, juízes e até ministros de cortes superiores contrários à revisão de entendimento pelo STF (leia abaixo a íntegra das notas contra e a favor da prisão após condenação em segunda instância).
Por um lado, os membros da AJD afirmam que “a tentativa de supressão da garantia mencionada (prisão apenas após o término da análise da última instância) encontra-se dentro de um perigoso contexto de relativização de direitos e garantias fundamentais, tendência que busca se perpetrar com o desígnio ilusório de, no caso, diminuir a impunidade”. Já o grupo independente diz que, “se o direito constitucional e processual, ao perseguir determinados fins, admite constrições entre os princípios, se há elasticidade na própria dignidade humana, não é menos admissível a restrição do princípio da presunção de inocência, cuja aplicação absoluta inviabilizaria até mesmo o princípio da investigação e da própria segurança pública”.
Efeito colateral
A reportagem conversou com alguns promotores, sub-procuradores e juízes que assinaram o manifesto. O argumento geral é que uma decisão do STF é capaz de gerar efeitos colaterais como insegurança jurídica.
Um subprocurador que pediu para não ter o nome divulgado diz que a classe está preocupada com os efeitos na violência. “Estamos preocupados com a impunidade. Eu, pessoalmente, com a criminalidade violenta. Nós estamos fiscalizando a intervenção no Rio e vamos ficar indignados de ver condenado em segundo grau solto”, reclamou.
Por sua vez, um juiz que trabalha em uma vara de entorpecentes da capital federal confidenciou que, “se essa decisão vier, vamos ter de soltar gente debaixo, mas também traficantes importantes ligados a facções criminosas”. Todos foram unânimes em afirmar que a nota despertou um sentimento nutrido por vários magistrados e procuradores desapontados com os rumos do assunto no Supremo.
Bola de neve
Na manhã da última quinta-feira (29/mar), os criadores da nota começaram a recolher apoio entre promotores de todo o país. Alguns juízes, sabendo do movimento, passaram a subscrever o documento e ajudar a divulgar a proposta. Na manhã do dia seguinte, quando a imprensa divulgou o plano, já eram cerca de 250 assinaturas reunidas. Na noite de ontem (1º/abr), poucas horas depois de iniciada a mobilização, quatro mil nomes já subscreviam o mesmo documento no Google Docs, um sistema online de compartilhamento de documentos.
Às 11 horas desta segunda-feira, a barreira das cinco mil assinaturas foi ultrapassada. As 21 páginas do documento alcançadas na última sexta-feira, incluindo assinaturas, transformaram-se em 160. Ao lado de nomes conhecidos do público, como Janot e Deltan Dallagnol, estão o das procuradoras da Lava Jato em São Paulo, Thaméa Danelon e Anamara Osorio, e o dos procuradores José Augusto Vagos e Sérgio Luiz Pinel Dias, da força-tarefa da Lava Jato no Rio de Janeiro.
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Outros nomes menos conhecidos, embora de renome no meio jurídico, é o dos ministros substitutos do Tribunal de Contas da União André Luís de Carvalho e Augusto Sherman Cavalcanti; do subprocurador-geral da República Nicolao Dino, preterido pelo presidente Michel Temer em favor de Raquel Dodge na lista tríplice dos procuradores, quando da indicação para a sucessão de Janot. Dino venceu a votação entre os procuradores, responsáveis por votar em três nomes a serem apresentados ao presidente, mas quem foi levada à sabatina obrigatória no Senado foi a segunda colocada na disputa, Raquel Dodge.
Dino notabilizou-se por pedir a suspeição do ministro Admar Gonzaga durante o julgamento do pedido de cassação da chapa Dilma/Temer no Tribunal Superior Eleitoral, em junho do ano passado, por abuso de poder econômico e político na eleição de 2014. Representante do Ministério Público Federal na corte naquela ocasião, o procurador também protagonizou bate-boca com o então presidente do TSE, ministro Gilmar Mendes, que ficou irritado com o pedido de suspeição.
Outros nove subprocuradores assinaram a nota, além 49 desembargadores de diversos tribunais do país, do procurador-geral de Justiça Militar, Jaime de Cássio, e do presidente do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, Mario Machado Vieira Netto.
Clube dos onze
O plano dos organizadores era distribuir a nota com as assinaturas aos 11 ministros do STF, e assim foi feito na tarde desta segunda-feira. Como alguns ministros não estavam no STF hoje, o jeito foi encaminhar o manifesto em cada um dos gabinetes dos magistrados. Isso foi feito, de acordo com a assessoria de imprensa do tribunal.
Também nesta segunda-feira, a defesa de Lula levou ao Supremo um parecer do jurista José Afonso da Silva contra a antecipação do cumprimento da pena uma vez esgotados os recursos na segunda instância. Para o jurista, é inconstitucional a execução da sentença imposta a Lula antes do chamado trânsito em julgado, quando não há mais possibilidade de contestação em todas as instâncias judiciais.
“O princípio ou garantia de presunção de inocência tem extensão que lhe deu o artigo 5º da Constituição Federal, qual seja, até o trânsito em julgado da sentença condenatória. A execução da pena antes disso viola gravemente a Constituição num dos elementos fundamentais do Estado Democrático de Direito, que é um direito fundamental”, aponta o jurista em trecho do documento.
Leia a íntegra do manifesto A FAVOR da prisão em segunda instância
Leia a íntegra da nota CONTRA a prisão em segunda instância, organizada por entidades como a Associação Brasileira dos Juristas pela Democracia, a Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas, o Instituto de Garantias Penais, o Instituto dos Advogados Brasileiros e o Instituto de Defesa do Direito de Defesa:
Nota em Defesa da Constituição
Advogados/as, defensores/as público/as, juízes/as, membros do Ministério Público, professores de Direito, e demais profissionais da área jurídica que abaixo subscrevem vêm, através da presente nota, em defesa da Constituição, bradar pelo respeito aos direitos e garantias fundamentais, notadamente da presunção de inocência, corolário do Estado Democrático de Direito. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 consagra, em seu texto, o direito à liberdade (artigo 5°, caput, da CR/88).
Direito esse que transcende a própria realidade humana. O respeito à dignidade humana é um dos fundamentos do Estado Constitucional.No título que trata dos direitos e garantias fundamentais – cláusula pétrea – a Constituição da República proclama que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (art. 5o, LVII CRFB). Ninguém, absolutamente ninguém, será considerado culpado enquanto não houver esgotado todos os recursos.
Daí decorre que, exceto nos casos de prisão em flagrante ou prisão provisória (temporária ou preventiva), uma pessoa só poderá ser presa depois de uma sentença condenatória definitiva (quando não houver mais possibilidade de julgamento). Gostemos ou não, a Constituição da República consagrou o princípio da presunção de inocência. De qualquer modo, qualquer outra interpretação que se possa pretender, equivale a rasgar a Constituição. No dizer de Ulysses Guimarães, “o documento da liberdade, da democracia e da justiça social do Brasil”.
O STF (Supremo Tribunal Federal) já decidiu que a prisão cautelar, que tem função exclusivamente instrumental, jamais pode converter-se em forma antecipada de punição penal. Assim, à luz do princípio constitucional, é inconcebível qualquer formas de encarceramento decretado como antecipação da tutela penal, como ocorre na hipótese de decretação da prisão em decorrência da condenação em segunda instância – hipótese odiosa de execução provisória da pena – em que a prisão é imposta independente da verificação concreta do periculum libertatis.
É importante salientar que, em nosso sistema processual, o status libertatis (estado de liberdade) é a regra, e a prisão provisória a exceção.Na concepção do processo penal democrático e constitucional, a liberdade do acusado, o respeito à sua dignidade, aos direitos e garantias fundamentais são valores que se colocam acima de qualquer interesse ou pretensão punitiva estatal. Em hipótese alguma pode o acusado ser tratado como “coisa”, “instrumento” ou “meio”, de tal modo que não se pode perder de vista a formulação kantiana de que o homem é um fim em si mesmo.
É imperioso salientar que, quando defendemos a efetivação do princípio da presunção de inocência, não o fazemos em nome deste ou daquele, desta ou daquela pessoa, mas em nome de todas e todos e, especialmente, em nome da Constituição da República. A par do que já vem sendo dito, cumpre destacar que o não julgamento imediato das ADCs 43 e 44, com a declaração de constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal e, consequentemente, com a proclamação definitiva do princípio constitucional da presunção de inocência, tem levado – conforme dados estatísticos apresentados pela Defensoria Pública – milhares de homens e mulheres a iniciarem o cumprimento provisório da pena antes de esgotado todos os recursos, com incomensurável prejuízo a liberdade e a dignidade humana.
Assim, em defesa da Constituição da República, esperamos que o Supremo Tribunal Federal cumpra com o seu dever de proteção dos direitos e garantias fundamentais, sob pena de frustrações de conquistas inerentes ao próprio Estado Democrático de Direito.
* Bruno Moura é jornalista e, eventualmente, colabora com reportagens para o Congresso em Foco.
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