O ex-presidente Lula já está sendo investigado sob a suspeita de ter “posição dominante” no chamado petrolão, nome pelo qual ficou conhecido o bilionário esquema de desvio de recursos criado na Petrobras. É o que revela trecho de pedido de abertura de inquérito enviado ao Supremo Tribunal Federal (STF) pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot.
No documento, obtido com exclusividade pelo Congresso em Foco, o procurador-geral afirma que Lula “é investigado inter alia [entre outras coisas] pela suspeita de que, no exercício do mandato presidencial, tenha atuado em posição dominante na organização criminosa que se estruturou para obter, mediante nomeações de dirigentes de estatais do setor energético, em especial a Petrobras S/A, a BR Distribuidora S/A e a Transpetro S/A, vantagens indevidas de empresas prestadoras de serviços, em especial de construção civil”.
Leia também
“Essas vantagens”, prossegue Janot, “eram destinadas a políticos em exercício de mandatos eletivos, partidos políticos e aos próprios dirigentes das estatais envolvidas, e a engrenagem principal de sua obtenção consistia no aval dos dirigentes a que as empresas engendrassem práticas de cartel nos procedimentos licitatórios para o fornecimento de bens e serviços às estatais”.
Questionado sobre o assunto, o advogado de defesa de Lula, Cristiano Zanin Martins, disse que a manifestação de Rodrigo Janot atesta que o seu cliente é vítima de perseguição política. Em manifestação por escrito a este site, Zanin disse:
“Não tenho conhecimento do documento em que consta essa afirmação, mas ela merece veemente repúdio. Mesmo após o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, seus familiares e colaboradores terem sido submetidos a medidas invasivas e arbitrárias, além de uma verdadeira devassa, nenhum elemento foi encontrado que pudesse configurar a prática de um ato ilícito. A tentativa de incluir Lula em uma narrativa criminosa a partir de uma utilização deturpada da teoria do domínio do fato é reprovável e deixa ainda mais evidente que o ex-presidente está sendo perseguido por algumas autoridades com um claro viés político. Lula não praticou qualquer ato ilegal antes, durante ou após o exercício do cargo de presidente da República, muito menos teve qualquer participação em uma organização criminosa”.
Citando ato legal que tornou válidos no Brasil os procedimentos investigatórios e processuais recomendados pela Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, o advogado completou: “Aliás, foi Lula que incorporou ao ordenamento jurídico brasileiro os mecanismos de combate ao crime organizado que hoje são utilizados pela Operação Lava Jato, a partir da edição do Decreto 5.687/2006”.
PublicidadeNomeação para o ministério
A afirmação do procurador-geral em relação ao papel de Lula no petrolão consta do mesmo pedido de instauração de inquérito no qual Janot lançou sobre algumas das mais altas autoridades da República a suspeita de terem incorrido no crime previsto no parágrafo primeiro, artigo 2º, da Lei 12.850/2013. Definido popularmente como “obstrução de justiça”, ele sujeita a pena de reclusão – pelo período mínimo de três e máximo de oito anos – quem “impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa”.
São alvos da petição, como já mostrou o Congresso em Foco, a presidente afastada Dilma Rousseff, o ex-ministro da Justiça José Eduardo Cardozo e os ministros do Superior Tribunal de Justiça Francisco Cândido de Melo Falcão Neto (atual presidente do STJ) e Marcelo Navarro. Todos eles são suspeitos de terem participado da nomeação do ministro de um tribunal superior (o próprio Navarro) com o objetivo de atrapalhar as investigações da Lava Jato, atuando principalmente em favor da liberação de empresários e executivos que se encontravam presos.
O pedido, feito no último dia 27 de abril, também atribui a Dilma a tentativa de obstruir a investigação quando nomeou Lula para chefiar a Casa Civil – neste caso, contando com a ajuda do então ocupante do cargo, o ex-ministro Jaques Wagner. De acordo com o documento, a nomeação se deu quando “as investigações da Operação Lava Jato dele [de Lula] se aproximavam decisivamente”, sem que houvesse qualquer outra razão para Jaques Wagner ceder lugar ao ex-presidente da República.
“Fica claro que Jaques Wagner não perdeu a confiança da Senhora Presidente da República, pois, imediatamente à sua exoneração da Casa Civil, foi nomeado chefe de gabinete da Presidência da República e, simultaneamente, esse cargo foi elevado, pela Medida Provisória 717/2016, apenas um dia antes de ser ocupado por Jaques Wagner, a status ministerial”, argumenta o procurador-geral, que também traz à lembrança a mal explicada antecipação da posse ministerial.
Para Rodrigo Janot, a intenção era evitar que Lula se tornasse réu perante o juiz Sérgio Moro, da 13a Vara Federal de Curitiba. Moro tornou-se conhecido por mandar para a cadeia dezenas de figurões do mundo empresarial e político, como o empresário Marcelo Odebrecht – principal executivo e herdeiro da maior empreiteira do país – e o ex-ministro José Dirceu. O procurador-geral reproduz na petição trecho de diálogo entre Jaques Wagner e o presidente nacional do PT, Rui Falcão, para demonstrar que “havia elevada preocupação em decisão célere determinando a prisão cautelar do denunciado”, naquele momento ameaçado ainda pela ação do Ministério Público de São Paulo, que chegou a pedir a prisão de Lula.
Para o advogado do ex-presidente, Cristiano Zanin Martins, “é um verdadeiro absurdo cogitar-se de qualquer ordem de prisão para o ex-presidente Lula, pois ele não cometeu crime algum”. Sustenta que “todas as providências jurídicas relativas às formalidades para dar posse a qualquer ministro são tomadas pela assessoria jurídica do governo, e não pela pessoa nomeada, embora não seja possível identificar qualquer problema jurídico na forma eleita”. E acrescenta:
“Por outro lado, o raciocínio parte da insustentável premissa de que o Supremo Tribunal Federal e o procurador-geral da República seriam menos competentes do que o juiz Sérgio Moro e os procuradores da força-tarefa para promover as investigações. A verdade é que o ex-presidente sempre contribuiu para o esclarecimento da verdade, prestando depoimentos e esclarecimentos às mais diversas autoridades, não sendo possível lhe imputar qualquer ato objetivando a obstrução das investigações”.
“Eles têm que ter medo”
Tomando por base o depoimento prestado pelo ex-senador Delcídio do Amaral em delação premiada, Janot diz que Lula também tentou convencer o ex-parlamentar e os senadores Renan Calheiros (PMDB-AL) e Romero Jucá (PMDB-RR) a criar, no âmbito do Senado, “comissão de acompanhamento da Operação Lava Jato com a finalidade explícita de miná-la por meio de discursos de deslegitimação e exercício pontual de influência”.
A conversa entre os senadores e o ex-presidente ocorreu no Instituto Lula, durante o ano passado, relata o procurador-geral. Ele identificou “tática obstrutiva semelhante, desta vez no âmbito de integrantes da Câmara dos Deputados e com vezo mais claro de truculência e intimidação direta”, em diálogo interceptado entre Lula e o deputado federal Wadih Damous (PT-RJ), no dia 28 de fevereiro de 2016.
Seguem trechos de afirmações feitas na oportunidade por Lula, identificado na petição por suas iniciais (LILS) e geralmente obtendo do outro lado da linha a concordância de Wadih:
“Tô botando muita fé de que se a nossa bancada tiver animada ela pode fazer a diferença nesse processo com o Moro, com Lava Jato, com qualquer coisa, sabe?”
“Eu acho que eles têm que ter em conta o seguinte, bicho. Eles têm que ter medo”
“Eles têm que ter preocupação… um filho da puta desses qualquer que fala merda, ele tem que dormir sabendo que no dia seguinte vai ter dez deputados na casa dele enchendo o saco, no escritório dele enchendo o sacão, vai ter uma representação no Supremo Tribunal Federal, vai ter qualquer coisa…”
“Vai ter dez discursos na Câmara contra ele, vai citar o nome dele, sabe? Se não parar com esse negócio de que eles tão acima do bem e do mal”
Após a última frase, o deputado replica: “É isso mesmo”.
Eis a defesa do advogado Cristiano Zanin sobre o assunto: “O ex-presidente Lula participa há 40 anos das principais discussões do país, apresentando suas ideias e opiniões. A criminalização do debate e da crítica das ações públicas é instrumento típico de regimes autoritários. Não tenho conhecimento sobre quem fez e onde essa afirmação foi feita, mas a considero manifestamente equivocada”.
Ainda na petição, Rodrigo Janot defende a investigação do ex-ministro Aloizio Mercadante, atribuindo-lhe a tentativa de dissuadir Delcídio de prestar delação premiada em troca de vantagens materiais, conforme gravações amplamente divulgadas à época.
As investigações contra Lula
No último fim de semana, tornou-se de conhecimento público a informação de que Janot pediu a remessa para a 13a Vara Federal de Curitiba, que tem como titular o juiz Sérgio Moro, o inquérito em que Lula é acusado de ter participado da tentativa de comprar o silêncio do ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró. Para evitar que ele aderisse à delação premiada, como terminou por ocorrer, o então líder do governo no Senado, Delcídio do Amaral (MS), propôs ajuda financeira e um plano de fuga do Brasil.
Lula é acusado de estar por trás da manobra, que levou o ex-petista Delcídio a ser preso e depois perder o mandato de senador. A investigação envolve o banqueiro André Esteves e o pecuarista José Carlos Bumlai, aos quais caberia arcar com os custos financeiros dos favores prometidos. Mas, para Janot, o ex-presidente da República desempenhou no episódio “papel central, determinando e dirigindo a atividade criminosa praticada” pelos demais.
Lula é investigado ainda por pelo menos três outros fatos de alguma forma associados à Operação Lava Jato.
O Ministério Público acredita que ele foi favorecido pela empreiteira OAS na compra e reforma de um apartamento tríplex na cidade litorânea do Guarujá (SP). Em delação premiada, o ex-presidente da OAS, Léo Pinheiro, disse que o apartamento foi construído e reformado com uma série de especificações próprias para atender o ex-presidente da República. De acordo com o executivo, Lula só devolveu o imóvel – que não chegou a ser registrado nem em seu nome nem de seus familiares – depois que a história foi noticiada.
Também é suspeito de ter se beneficiado indevidamente pela reforma do sítio em Atibaia (SP), registrado em nome de terceiros, mas usufruído pelo ex-presidente e por sua família. A OAS e a construtora Odebrecht gastaram, em valores atualizados, mais de R$ 700 mil na reforma.
Finalmente, estão sob investigação os repasses feitos por empresas envolvidas na Lava Jato ao Instituto Lula e à LILS Palestras, firma utilizada pelo ex-presidente para ser remunerado por palestras realizadas no Brasil e no exterior. Os valores repassados superam R$ 30 milhões.
Veja também: