Está em curso na Câmara, em votação plenária nesta quarta-feira (27), a votação de uma medida provisória que, relatada e a ser votada por diversos devedores da União, promove uma renegociação de dívidas com a União em que diversos parlamentares serão beneficiados – eles poderão, por exemplo, parcelar seus débitos em até 175 parcelas, com abatimento de juros e das chamadas multas de mora. Trata-se da MP 783/2017, que vai substituir o Refis criado para resolver a pendências de empresas e pessoas físicas, tributárias ou não, com a Receita Federal, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) e a Procuradoria-Geral da União (PGU). A matéria foi editada pelo governo Temer devido a um impasse regimental: a MP 766/17, que criava o Programa de Regularização Tributária (PRT), concebido para substituir o Refis, perdeu a validade porque não teve tramitação concluída pelo Congresso.
Em plenário, a oposição acusa Temer de promover perdão de dívidas para o agronegócio, para os bancos e, agora, para parlamentares devedores com o objetivo de arregimentar o apoio contra a segunda denúncia que enfrenta em menos de dois meses, esta por organização criminosa e obstrução à Justiça. Para os oposicionistas, trata-se de compra de votos por meio da máquina pública e do orçamento. Na primeira denúncia, por corrupção passiva, o presidente liberou bilhões em emendas e negociou cargos com a base aliada e viu a Câmara barrar a denúncia, em 2 de agosto. Governistas se defendem dizendo que, ao promover a renegociação das dívidas, atores econômicos importantes recuperarão o fôlego e, consequentemente, voltarão a contribuir para o reaquecimento da economia brasileira.
Como este site mostrou em 14 de agosto, um grupo de deputados e senadores inscritos na Dívida Ativa da União é responsável por um rombo de R$ 1,4 bilhão nos cofres públicos (R$ 1.458.826.055,19, mais precisamente), sem contar a “relação de devedores da União que financiaram campanhas eleitorais” para a Câmara e Senado, entre pessoas físicas e jurídicas, em que muitas empresas são de propriedade dos próprios parlamentares ou apresentadas, a título de identificação de doações, como partidos políticos. Caso a relação de doadores seja considerada na soma total da dívida ativa vinculada a políticos e campanhas, nas últimas eleições para deputado e senador, esse total pode ultrapassar as dezenas de bilhões de reais, uma vez que há diversas empresas doadoras em nome de parlamentares ou por eles representadas.
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É nesse cenário que a Câmara quer aprovar o novo refinanciamento de dívidas. Mesmo debaixo de críticas da sociedade civil organizada, o relator da MP 783, deputado Newton Cardoso Júnior (PMDB-MG), preparou parecer com descontos ainda mais elevados para facilitar a renegociação das dívidas. Agora há pouco, uma emenda foi aprovada em plenário dando preferência ao seu substitutivo, que toma o lugar da MP 783 na hora da votação.
No texto original da medida provisória, esses abatimentos variavam entre 25% e 90%, e agora passam a ser de 85% a 99% das multas, juros de mora, encargos legais e honorários advocatícios, nos termos do texto sugerido pelo deputado e pronto para votação de plenário. O governo, porém, não aceita a nova versão do deputado, que coloca Câmara e Ministério da Fazenda em colisão.
Outra facilidade que devedores terão é que, quando o pagamento de 80% da dívida for efetuado de uma só vez, o desconto nos juros aumenta de 90% para 99%. No caso das multas, de 50% para 99%. Para quem quiser parcelar os 80% de dívidas, tais abatimentos podem alcançar 90%. Além disso, antes do relatório de Newton Cardoso Júnior, apenas dívidas inferiores a R$ 15 milhões recebiam condições especiais de pagamento – um valor menor de entrada, de 7,5% da dívida. Agora, o relatório do deputado diminui essa entrada para 2,5% do débito, e para dívidas muito maiores (até R$ 150 milhões). Newton Cardoso Júnior é sócio de empresas que, juntas, devem mais de R$ 50 milhões à União.
A votação na Câmara inflama oposicionistas e entidades da sociedade civil. “O cidadão precisa tomar consciência de que está em curso uma manobra política que pode eliminar todos os juros e multas de grandes devedores. Esses políticos e seus financiadores são os mesmos que defendem mais aumentos de impostos contra os pobres e a classe média, além da perda de direitos trabalhistas e previdenciários”, diz material disponível no site Quanto Custa o Brasil, por meio do qual o Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz) tem reunido os números relativos ao Parlamento e veiculado, em tempo real, o chamado “sonegômetro”.
Devedores doadores
Em entrevista ao Congresso em Foco, procurador da Fazenda Nacional Caio Graco destaca que os dados foram gerados a partir da pessoa física dos congressistas. Para o procurador, um dos absurdos expostos no levantamento é aqueles referente às empresas ou pessoas físicas que, mesmo devendo milhões ou até bilhões à União, fizeram doações de campanha igualmente milionárias. Em muitos desses casos, o parlamentar é responsável pela empresa ou compõe seu quadro societário, lembra Caio.
Trata-se de um grande consórcio de doações entre os próprios parlamentares, um grupo de devedores com influência crucial nos pleitos eleitorais. Em alguns casos, várias corporações devedoras fizeram doações que, reunidas e destinadas a um mesmo parlamentar, chegam a R$ 10 bilhões.
São empresas que devem mais de R$ 1 bilhão, por exemplo, e doaram centenas de milhares de reais nas últimas eleições para senador ou deputado, alguns deles não eleitos. Muitas delas doaram para diversos parlamentares – caso da Braskem/SA, com dívida total superior a R$ 2 bilhões (R$ 2.074.982.962,26) e doação de R$ 250 mil para cinco candidatos ao Senado. Os senadores Fernando Collor (PTC-AL), José Serra (PSDB-SP) e Paulo Rocha (PT-PA), além de Eduardo Suplicy (PT-SP), atual vereador de São Paulo, e Paulo Bornhausen (PSB-SC), que não conseguiram se eleger para o Senado em 2014, receberam R$ 50 mil cada (veja aqui).
Para os candidatos à Câmara, a Braskem reduziu o valor da doação para R$ 30 mil, mas inflou as campanhas de 36 candidatos a deputado, muitos eleitos ou reeleitos (aqui). Ou seja, despesa superior a R$ 1 milhão (precisamente, R$ 1,080.000,00) naquele pleito.
“Temos que rever nossos valores políticos. Vivemos uma fase extremamente difícil, em que os olhos da sociedade foram abertos e a cada dia vemos exemplos como esse”, lamentou Caio, que também é diretor do Sinprofaz, em entrevista ao site. “A ingerência de interesses dentro da política é clara e está aberta aí para a sociedade ver. Infelizmente essas práticas odiosas continuam se repetindo, mas nós torcemos para que esse novos fatos que estão sendo expostos sejam relevantes ao ponto de enxergarmos a possibilidade de realizarmos uma mudança política, por meio da eleição de pessoas hígidas – seja no âmbito tributário, no penal, ou qualquer outro.”
Para o procurador, Executivo e Legislativo atuam no sentido de, por um lado, facilitar a vida de gente com muito dinheiro, enquanto impõem sacrifícios à grande parcela da população. “Tivemos alterações severíssimas no âmbito do Refis, visivelmente alargando a margem de descontos que a União deu [para devedores], em um ano em que se cobra de toda a população sacrifícios para reformas, para aumento de impostos etc”, critica Caio Graco.
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