Edson Sardinha
Um metro e setenta de altura, magro, cabelos lisos e castanhos, olhos ligeiramente apertados, 54 anos, o ex-ativista italiano Cesare Battisti é um homem condenado a nunca mais ver o sol. Preso há dois anos na Penitenciária da Papuda, no Distrito Federal, ele demonstra uma mistura de inconformismo, esperança e resignação nos instantes que antecedem seu juízo final, marcado para começar às 9h desta quarta-feira, dia 9/9/9. “Estou pronto pra tudo”, afirma.
O que, para alguns, pode remeter a uma combinação cabalística de números, para Cesare representará a reconciliação com a liberdade ou a condenação pelo resto da vida. Dois destinos tão antagônicos estarão nas mãos dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) quando a mais alta corte do Judiciário brasileiro julgar amanhã o pedido de extradição feito pelas autoridades italianas.
Convidado pelo Comitê de Solidariedade a Cesare Battisti, o Congresso em Foco visitou ontem (7) o ex-ativista italiano, preso em uma ala reservada a ex-policiais e detentos com nível superior na zona rural de São Sebastião, nos arredores de Brasília.
Autocrítica
Encontrou um homem bem articulado, que fala com fluência o português, nega veementemente a autoria dos quatro homicídios que lhe são imputados, ocorridos entre 1978 e 1979, e se diz vítima de uma implacável perseguição política. E que também faz uma autocrítica. Reconhece que cometeu pelo menos dois erros capitais: não ter negociado anteriormente sua rendição com as autoridades dos países pelos quais passou e ter superdimensionado seu próprio poder. “Achava que tinha mais força do que tenho. Fiz uma má avaliação da situação.”
“Fui mal assessorado. Eu não estava me escondendo. Participava de encontros políticos nos países por onde estive. Deveria ter negociado minha rendição desde o princípio”, avalia. “Sou um arquivo vivo que não se calou. Falei demais talvez. Não conhecia meus limites. Por isso estou aqui”, complementa.
Limites
Para ele, o caso está sendo tratado com dois pesos e duas medidas pela Justiça italiana. “Quando tratam de me condenar, me acusam de crime político. Quando é para me extraditar, dizem que foi um crime comum”, reclama. “Nessas horas sou um animal ainda mais político. Sou muito realista. Sei o que represento, agora conheço meus limites”, declara.
Segundo ele, a “obsessão” das autoridades italianas por sua extradição tem motivação política. “O povo italiano não sabe quem é Cesare Battisti. Tem preso político sepultado vivo na Itália há quarenta anos. Nossos inimigos daquela época [anos 70] agora estão no poder”, acusa.
O encontro
Vestindo camiseta amarela, bermuda bege, meias e tênis brancos, o ex-ativista chegou à administração do Centro de Internação e Reeducação (CIR), novo nome da Papuda, com as mãos estendidas para trás, como se tivesse algemado, e cabisbaixo, escoltado por cinco agentes penitenciários fortemente armados. Ao entrar na sala, abriu um largo sorriso e os braços para cumprimentar um a um os visitantes. “Você está com gripe?”, foi a primeira coisa que disse, descontraído, ao beijar no rosto uma integrante do comitê que usava uma máscara por estar se recuperando de uma cirurgia.
Cesare conversou cerca de 70 minutos com o Congresso em Foco e outras dez pessoas do grupo que lhe presta solidariedade. Nesse período, alternou sorrisos, ao brincar com os militantes, com um semblante de preocupação, ao comentar sua situação e rebater seus acusadores, apontados por ele como “inimigos sujos”.
Livro
Às vésperas de ter o futuro decidido, Cesare diz estar dormindo bem e que abandonou os antidepressivos que o acompanharam durante boa parte dos dois anos em que está preso na Papuda. Conta que tem aproveitado o tempo livre para concluir seu segundo livro autobiográfico, “Ao pé do muro”. “Falta um capítulo”, relata.
Às quartas-feiras, ele tem acesso à internet na biblioteca do presídio. É lá que tem digitado os manuscritos da nova obra. O italiano reclama que não querem deixá-lo muito tempo por lá, porque quase sempre falta pessoal. Também lamenta não ter atendimento psicológico. “Isso só existe aqui na teoria”, afirma. Desde que foi preso, diz ter sido atendido apenas por um psiquiatra, que lhe prescreveu a medicação. “Não preciso mais de medicamentos”, conta em tom de alívio. “Estou mais lúcido desde que soube da data do julgamento.”
Rotina na prisão
Cesare diz que não tem do que se queixar dos agentes penitenciários nem do colega de cela, um ex-policial. Mas lamenta pela qualidade da comida e pela falta de conforto para dormir. “A comida é ruim, mas tem uma cantina, aonde a gente pode comprar lanche. Não temos cama. Na verdade, temos um colchão, e temos de fazer aquilo virar uma cama.” Apesar das queixas, o italiano diz que não perdeu peso desde que foi preso e que tenta manter a forma fazendo abdominais regularmente.
Esquerda brasileira
Mais do que nos ministros do Supremo, que vão julgar o pedido de extradição, Cesare afirma que aposta suas fichas na força dos movimentos sociais para se salvar. “Os movimentos sociais vão decidir a coisa. Só fugi da França porque a pressão popular me ajudou. Senão, já estaria na Itália há muito tempo. Espero que o STF tome uma decisão favorável”, diz.
Sindicatos, parlamentares e lideranças sociais ligadas à esquerda e à defesa dos direitos humanos são os principais apoiadores do ex-ativista no Brasil. Um grupo de militantes promete fazer uma vigília amanhã cedo em frente ao Supremo para pressionar pela liberação de Cesare.
Para ele, a recepção pela esquerda brasileira foi uma “grande e boa surpresa”, pois, até então, não tinha nenhuma ligação com o país, para o qual fugiu em 2004, após receber a informação de que seria extraditado da França, onde vivia desde 1991, para a Itália.
“É como uma mão de pintura na parede. O entusiasmo que se sente no Brasil, a esquerda europeia perdeu. Há um niilismo por lá, não se acredita em nada. Aqui as pessoas ainda acreditam na transformação, na necessidade de se reviver a justiça social”, afirma.
Por que o Brasil
Segundo ele, três fatores pesaram na decisão de vir para o Brasil: a tradição do país em acolher ex-ativistas italianos, a associação da imagem do presidente Lula às lutas sociais e as boas referências dadas por amigos brasileiros que conhecia em Paris. “Achei que aqui poderia reconstruir minha vida pessoal”, diz.
Cesare Battisti afirma que, caso seja solto pelo STF, pretende continuar no país e se dedicar à literatura. No México e na França, escreveu livros policiais e Minha fuga sem fim, seu primeiro livro autobiográfico. “O primeiro artigo da lei do refúgio proíbe que o refugiado faça política. Não vou fazer política. Vou fazer cultura. As duas coisas podem ser próximas. A fronteira entre elas não será estabelecida por nenhum tribunal”, afirma.
Pai da biogeneticista Valentina, de 26 anos, e de Charlene, de 14, Cesare diz esperar trazer a filha mais velha, que trabalha numa empresa inglesa na França, para o Brasil. A mais nova, conta ele, ainda estuda e não deixará a mãe.
Quatro assassinatos
O futuro traçado por Cesare, no entanto, dependerá do julgamento que os ministros farão de um pedido que remonta a uma história polêmica e banhada em sangue, iniciada há 31 anos, durante os chamados anos de chumbo da Itália. Período marcado por sequestros, atentados a bomba, assaltos a bancos e assassinatos promovidos por diversos grupos esquerdistas no país entre as décadas de 70 e 80.
Cesare é acusado de ter matado o carcereiro Antonio Santoro, em junho de 1978, e o agente policial Andrea Campagna, em abril de 1979, de ter dado cobertura ao assassinato do açougueiro Lino Sabbadin, em 16 de fevereiro de 1979, e ter tramado a morte do joalheiro Pierluigi Torregiani, também no mesmo dia. Na época, os assassinatos foram reivindicados pelo grupo de extrema-esquerda Proletários Armados para o Comunismo (PAC), do qual o ex-ativista fez parte.
Condenação, fuga e condenação
Ainda em 1979, Cesare foi preso, juntamente com outros integrantes do PAC, acusado de porte ilegal de armas e participação em grupo armado. Condenado a 12 anos e meio de prisão, ele fugiu em 1981 para a França e, depois, para o México.
A associação do nome de Cesare Battisti aos assassinatos veio em 1982, quando Pietro Mutti, um dos líderes do PAC, o responsabilizou pelas quatro mortes. Principal acusado pelos homicídios na época, Mutti aceitou o instrumento da delação premiada, que implica a redução da pena para o preso que colabora com as investigações.
As alegações dele foram consideradas procedentes pela Justiça italiana que, em 1993, confirmou a condenação de Cesare, consolidando sentença dada em 1988, à prisão perpétua com privação de luz solar.
O ativista italiano sustenta que deixou o PAC ainda em maio de 1978, quando os esquerdistas do Brigadas Vermelhas sequestraram e mataram o então primeiro-ministro democrata-cristão Aldo Moro. Em carta enviada aos ministros do Supremo Tribunal Federal, Cesare afirma que não concordava com os assassinatos promovidos pelos movimentos de esquerda.
França
Depois de viver até o final dos anos 80 no México, onde trabalhou na área cultural, retornou à França, país de sua mulher, em 1990, quando o então primeiro-ministro, François Mitterrand, prometeu não extraditar para a Itália os militantes esquerdistas que houvessem renunciado à luta armada. Em 1991, foi preso a pedido das autoridades italianas por cinco meses. Mas o Tribunal de Apelações de Paris negou a extradição e o pôs novamente em liberdade.
A França alegou, na decisão, que a legislação antiterrorista italiana era contrária aos princípios franceses de direito e que o julgamento, sem a presença do acusado, também ia contra os princípios da Corte Européia dos Direitos Humanos.
Rumo ao Brasil
Em 2004, Cesare Battisti fugiu da França para o Brasil, após uma engenhosa viagem por Espanha e Portugal. Segundo ele, fontes lhe contaram que as autoridades francesas discutiam mudanças na relação com a Itália e estariam dispostas a aceitar o pedido de extradição. Logo em seguida, a França decidiu atender ao pedido das autoridades italianas.
Cesare foi encontrado no Rio no início de 2007, após operação que envolveu policiais brasileiros, franceses e italianos. Foi transferido logo em seguida para a sede da Polícia Federal em Brasília e, na sequencia, para a Papuda.
Refúgio político
Em janeiro deste ano, Cesare recebeu refúgio político do governo brasileiro. O ministro da Justiça, Tarso Genro, atendeu a apelo da defesa e revogou a decisão do Conselho Nacional para os Refugiados (Conare) – comissão interministerial – que, por três votos a dois, havia lhe negado o status de refugiado. Tarso cedeu à tese dos advogados de que Cesare não teve um julgamento justo na Itália, e que sua volta ao país implicava sérios riscos à sua integridade física.
A intervenção de Tarso precipitou uma crise diplomática entre os dois países. O governo italiano alega que o ex-ativista cometeu crime comum, e não político, e que não pôde se defender da acusação dos quatro homicídios porque estava foragido. E reforça ainda que, tanto na época em que os crimes foram cometidos, quanto no julgamento, a Itália vivia em regime democrático.
Julgamento
As autoridades italianas recorreram da decisão do ministro brasileiro e pediram ao STF a extradição imediata de Cesare. Desde então o Supremo adiou por diversas vezes o julgamento, agora confirmado para amanhã. Os ministros vão decidir se a concessão do refúgio a Battisti anula ou não o processo de extradição.
Em 2006, os ministros negaram um pedido feito pela Colômbia em processo que, segundo a defesa de Battisti, tem similaridades com o caso do italiano. O STF entendeu que um padre ligado às Forças Revolucionárias da Colômbia (Farc) não poderia ser extradito por ter sido reconhecido como refugiado político pelo Conare. Acusado de terrorismo, Oliverio Medina foi solto pelas autoridades brasileiras. Na época, apenas o ministro Gilmar Mendes, atual presidente da corte, se posicionou a favor do pedido da Colômbia.
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