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A suspeita é que o parecer tenha sido encomendado por José Ricardo a Cortez, numa espécie de terceirização entre conselheiros, mediante o pagamento de propina para livrar devedores no Carf, última instância administrativa decisória para dívidas fiscais com a União. As informações fazem parte do conjunto de indícios reunidos pela PF para justificar a autorização de procedimentos investigatórios, como quebra de sigilos e ordens de busca e apreensão.
A disputa judicial envolvendo os dois ex-conselheiros jogou luzes no esquema de compra de votos sobre dívidas de contribuintes com a União. Segundo a PF, a teia de corrupção nos julgamentos do Carf provocou desvios de quase R$ 6 bilhões nos últimos anos. Mas a estimativa é de que o rombo possa chegar a R$ 19 bilhões. Embora o valor da querela trabalhista entre Cortez e José Ricardo não tenha sido divulgado, informações de bastidor obtidas pelo Congresso em Foco dão conta de que casos como esse chegam a R$ 3 milhões a serem divididos pelos conselheiros.
Cortez e José Ricardo são mencionados com frequência nas investigações da Zelotes, reforçada desde 19 de maio com a instalação da CPI do Carf no Senado, presidida pelo senador Ataídes de Oliveira (PSDB-TO) e com relatoria de Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM).
Dois meses antes, em 16 de março, a juíza federal Pollyanna Kelly Alves, em parecer paralelo ao inquérito da PF, proferiu decisão apontando José Ricardo como “um dos principais responsáveis pelo esquema de corrupção” no conselho, órgão do Ministério da Fazenda. Já Cortez, também mencionado na sentença da magistrada, seria o responsável por redigir os votos que eram apresentados por José Ricardo no Carf e teria se autoincriminado em interceptações telefônicas autorizadas pela Justiça.
A reportagem tentou entrevista com Cortez e José Ricardo. Recados foram deixados por telefone e no escritório do segundo, mas ainda não houve retorno aos contatos.
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Segundo a PF, as ligações – profissionais ou informais – entre Cortez e José Ricardo estão claramente demonstradas nas investigações. No entanto, a ação movida pelo primeiro foi considerada improcedente em primeira instância na Justiça do Trabalho. Sócio do grupo ABC Consultoria Tributária, Cortez firmou contrato em 2009 com o escritório de advocacia de José Ricardo, o J. R. Silva Advogados Associados, depois de deixar suas funções no Carf.
Na ação, o ex-conselheiro diz que tão logo foi contratado passou a cuidar da elaboração dos acórdãos dos processos distribuídos a José Ricardo no conselho. Ou seja, cabia a Cortez a redação de votos e relatórios que seriam apresentados pelo parceiro – função pela qual, diz, não foi pago.
Segundo Cortez, seu vínculo trabalhista com a J. R. Silva foi configurado por meio da ABC Consultoria Tributária (como pessoa jurídica) e encerrado em 2013, depois da elaboração de acórdãos (relatórios e votos) para mais de 200 processos fiscais. Pedindo indenização por dano moral e reconhecimento do vínculo trabalhista, ele acusou a empresa de José Ricardo de atrasar seguidamente o pagamento de seus vencimentos mensais.
Já a J. R. Silva garante que a ABC Consultoria Tributária era paga por votos e relatórios apresentados, e que esta possuía outros clientes. A defesa de José Ricardo Silva ponderou ainda que apenas concedeu um cômodo de sua estrutura funcional para que Cortez o utilizasse nos serviços acordados entre as partes – versão acatada pela 5ª Vara do Trabalho, que interpretou a relação trabalhista como uma espécie de assistência técnica exclusiva para a preparação dos acórdãos. Como a firma de Cortez não atendia outros clientes da contratante, registra a sentença, o vínculo formal pleno não estaria configurado e, por isso, não caberia condenação para a J. R. Silva.
Em outras palavras, estaria configurada a terceirização de acórdãos no Carf, em que José Ricardo da Silva subcontratou Cortez para elaborar as deliberações fiscais – procedimento que não estava definido nas normas do antigo Regimento Interno do Carf, já alterado pelo Decreto 8441/2015, assinado em 29 de abril pela presidenta Dilma Rousseff e publicado no dia seguinte no Diário Oficial da União. Nesse novo formato, decorrência das investigações da Zelotes, o regimento também não prevê a terceirização dos acórdãos.
Extraoficial
Esse processo de terceirização no seio do Carf não é raro, segundo conselheiros ouvidos pela reportagem do site especializado em informação jurídica Jota, que veiculou o caso da ação trabalhista em primeira mão. De acordo com o Jota, o excessivo volume de processos submetidos à apreciação dos conselheiros faz com que eles recorram aos serviços de assessores, como foi o caso de Cortez – até estagiários de advocacia são utilizados na função. Antes da Zelotes e da publicação do decreto, os conselheiros acumulavam o trabalho no Carf com outras atividades, a exemplo do que fazia José Ricardo da Silva.
Raro é que profissionais sejam contratados apenas para a função de redigir acórdãos, diz a reportagem. O desafio da PF é demonstrar que, em situações desse tipo, a subcontratação do trabalho serviu para viabilizar desvios e lavagem de dinheiro, mediante pagamento de propinas pagas por empresas contribuintes a conselheiros, ex-conselheiros e terceirizados.
Um especialista em Direito Tributário que acompanha as investigações confidenciou ao Congresso em Foco que, na antiga estrutura do Carf, é impossível que o esquema de corrupção tenha sido executado sem o aval dos conselheiros ligados à Receita Federal – as turmas de julgamento eram formadas por seis conselheiros, três de origem fazendária e três atrelados às empresas contribuintes. A explicação é simples, e pode ser resumida na necessidade de obtenção de maioria no colegiado: nos processos mais polêmicos, e em hipótese de empate na deliberação sobre determinada pendência fiscal, cabia ao primeiro grupo o voto de desempate.
Ou seja: fazia-se necessário que ao menos um conselheiro fazendário fosse cooptado pelo esquema de corrupção, em cada julgamento, para viabilizar votos fraudados. “Não havia condições de um relatório [acórdão] ser aprovado sem o aval de um conselheiro com o ‘voto de Minerva’. Ainda que o conselheiro dos contribuintes tivesse todos os votos de seus pares contribuintes [isto é, três], ele precisaria de ao menos um voto fazendário para fazer valer sua decisão”, informou o especialista, que tem proximidade com diversos membros do Carf.
Inquérito parlamentar
Nos domínios da CPI do Carf, instalada no Senado em 19 de maio, Paulo Roberto Cortez, auditor fiscal aposentado da Receita Federal, é considerado peça-chave na engrenagem de corrupção desbaratado pela Zelotes. Mas não está disposto a contribuir com os trabalhos da comissão de inquérito: convocado, ele compareceu ao colegiado, em 18 de junho, protegido por um habeas corpus que lhe assegurou o direito de ficar em silêncio. Depois de fazer diversas perguntas em vão, a relatora da CPI, Vanessa Grazziotin, lamentou a postura do interrogado.
Nas últimas audiências da CPI, manifestou-se a certeza de que, em resumo, os pequenos contribuintes se submetem às decisões do Carf e arcam com seus débitos a duras penas, mas dentro da legalidade. Por outro lado, empresas mais ricas pagavam propina aos conselheiros para se livrar total ou parcialmente das sanções do Fisco.
Mas a investigação no Senado deve prosperar mesmo sem o auxílio direto de Cortez. Naquele 18 de junho, o ex-conselheiro Nelson Mallman afirmou, em depoimento à CPI, que Cortez havia denunciado à Coordenação-Geral de Pesquisa e Investigação (Copei) da Receita Federal o esquema de manipulação de julgamentos no Carf, com denúncia específica a José Ricardo da Silva, apontado nesse registro como um dos operadores do sistema de fraudes. Em razão do relato, o presidente da CPI, Ataídes Oliveira, fez adendo ao próprio requerimento de acesso a essa delação ampliando a demanda por informações.
Modus operandi
De acordo com as investigações da PF, ex-conselheiros do Carf e consultores na ativa procuravam empresários com grandes dívidas e lhes apresentavam a possibilidade de reduzi-las ou anulá-las por meio de pagamento de propina, que variava entre 1% e 10% do débito. No cardápio, pedidos de vista dos processos, emissão de pareceres favoráveis aos grupos empresariais e exames de admissibilidade de processos, entre outros favores. Em um dos casos sob investigação, uma multa de R$ 150 milhões foi extinta sem fundamentação. Nomes e valores estão sob sigilo judicial, mas as investigações da PF e da CPI já sugerem alguns investigados, devido a convocações já aprovadas pelos senadores.
Entre os próximos convocados estão o presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Luiz Moan Yabiku Junior, e gestores da Ford e da Mitsubishi. Também foi aprovada a convocação do vice-presidente do Banco Santander, Marcos Madureira, e do presidente do Grupo RBS (grupo de comunicação afiliado à Rede Globo no Rio Grande do Sul), Eduardo Sirotsky Melzer.
Ainda segundo a PF, 70 grandes bancos e empresas dos setores automobilístico, de comunicação, siderúrgico, agrícola e industrial subornaram conselheiros. Desvios em nove processos no valor de R$ 6 bilhões já foram identificados, valor que aumentaria para R$ 19 bilhões com as 61 causas suspeitas restantes. Na apresentação de resultados da Zelotes, em março, a Receita informou que um universo de 105 mil processos totalizam R$ 520 bilhões em pendências de contribuintes com a Fazenda.