Ana Pompeu
Especial para o Congresso em Foco
O avanço dos direitos LGBT no Brasil tem na atuação de lideranças religiosas no Poder Legislativo um entrave poderoso. A relação entre Estado e religião no país sempre foi próxima, mas passa por transformações importantes nos últimos anos. A entrada de parlamentares ligados a grandes grupos religiosos – como Assembleia de Deus e Igreja Universal do Reino de Deus, por exemplo, no caso dos neopentecostais, e a Renovação Carismática, da Igreja Católica – deu origem a uma bancada articulada na defesa de questões morais que vão de encontro aos direitos das minorias.
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No mês do orgulho LGBT, e antecedendo a 21ª Parada do Orgulho LGBTS de Brasília, a ser realizada no próximo domingo (25), os organizadores dos eventos mais importantes do movimento, promovem também um seminário que discute a relação entre religião e política. Intitulado “Fé na democracia: a defesa da laicidade do Estado no Brasil e da cidadania LGBT”, ele se propõe a pensar como minimizar os prejuízos às populações politicamente margilanizadas frente a essa atuação.
A atuação das lideranças religiosas passa por uma estratégia mercadológica, de uso de veículos de comunicação, recursos financeiros, apoio de uma hierarquia religiosa que muito as favorecem e impulsionam. “A defesa da laicidade passa por criar mecanismos que garantam que uma decisão política não precise de chancela religiosa, o que não significa que vamos debater somente em termos ditos racionais. Mas a opinião de uma liderança religiosa não pode valer mais que a minha opinião”, aponta o pesquisador de laicidade da Universidade de Brasília (UnB), Daniel Jacó.
No debate público feito no Brasil, há muito incentivo para se moralizar as questões, de forma a prejudicar os LGBTs, conforme entende Jacó. “Tradicionalmente, um dispositivo clássico de violência contra LGBTs é criar pânicos morais. E é isso que tem sido feito de uma forma que constrange o sistema político e deixa de lado as questões de liberdade de consciência”, afirma. Ele lembra que a religião é uma prática social, sendo assim, pública, feita socialmente e, portanto, participante da vida política da sociedade. “O pânico moral distorce, falsea informações, como aconteceu com o chamado Kit Gay, que só de ser chamado dessa forma já demonstra o interesse em acionar o pânico moral”, lembra. Em geral, a criação desses pânicos morais acionam também a defesa da tradicional família burguesa.
Em 2004, o governo federal lançou o programa Brasil sem Homofobia com o objetivo de combater a violência e o preconceito contra a população LGBT. Uma parte dele focava na formação de educadores para tratar questões relacionadas a gênero e a sexualidade, que seria o projeto Escola sem Homofobia. Em 2011, quando estava pronto para ser impresso, setores conservadores da sociedade e do Congresso Nacional iniciaram uma campanha contra o projeto. Nas acusações feitas, passaram a chamar, a política de “kit gay” e acusá-la de “estimular o homossexualismo e a promiscuidade.” O governo cedeu à pressão e suspendeu o projeto. Por quase quatro anos, o 1,9 milhão de reais investido no projeto pareceu perdido.
Diante dessas dificuldades, o coordenador do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professor do Departamento de Psicologia, Marco Aurélio Máximo Prado, entende que o movimento LBGT não tem sabido lidar com a reação conservadora. “O movimento se institucionalizou em uma perspectiva de produzir advocacy, em várias ONGs, frentes autônomas. Autônomas em relação a quê? À política institucional”, avalia. Com “advocacy”, a especialista se refere ao papel do terceiro setor na defesa de bandeiras diversas.
Para ele, o perfil do movimento adquiriu um perfil baseado em duas vertentes: as paradas como a principal forma de protesto, e as frentes de advocacy. “Assim a mobilização social e a disputa de opinião na sociedade não tem sido central. Daí a dificuldade em enfrentar esses retrocessos”, sugere. O momento, para ele, é esse. O de ampliar a organização e o foco na opinião pública. “Precisamos enxergar as igrejas como atores políticos”, diz.
Estado x Igreja
A política brasileira teve, desde os primórdios, mais especificamente desde os tempos da colonização, relação íntima com a igreja. Na época, a Católica. O país já assinou acordos com o Vaticano, enquanto Estado. A Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) teve e tem influência sobre políticas públicas e decisões no âmbito do Executivo nacional. Nos plenários do Legislativo, os trabalhos são iniciados com a seguinte frase: “Sob a proteção de Deus, declaro aberta esta sessão”. A sentença é recorrentemente dita pelos presidentes da Câmara e do Senado, bem como repetida em outros colegiados Brasil afora.
Com uma bancada religiosa mais expressiva a cada legislatura, no entanto, parece ter se evidenciado o poder de influência desses setores na política institucional. Apesar de ser amplamente dito que temos, no Brasil, um Estado laico, a Constituição de 1988 não o diz, explicitamente, como aponta a pesquisadora de laicidade pela Universidade de São Paulo (USP) e consultora da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA), Joana Zylbersztajn.
Não está escrito que o Brasil é laico, mas uma série de elementos que a Constituição traz diz, sim, que é um país laico, de acordo com ela. “O art. 19, trata da separação entre Estado e religião. É o que geralmente as pessoas confundem como sendo o texto da laicidade. No entanto, d-efendo que este é apenas um elemento”, explica.
A Inglaterra, por exemplo, por viver uma monarquia, tem um Estado religioso em que o monarca tem bênção especial de Deus – o que é apenas um detalhe sem desdobramento, necessariamente, da vida social. “Mas na vivência cotidiana, pode ser muito mais laica que outros Estados. A separação é apenas um dos elementos”, acrescenta a pesquisadora.
No caso brasileiro, ela identifica a laicidade em outros três aspectos da Carta Magna: a democracia, presente no primeiro artigo, a igualdade e a liberdade, ambos no artigo 5°. “O poder não vem de Deus, vem do povo em uma democracia. Pela igualdade, tem-se que nenhuma religião deve ser eleita sobre outra. E, quando se preza a igualdade, nenhuma pessoa deve ser tratada de forma diferente”, detalha. Esses princípios, de acordo com ela, são a garantia da defesa das minorias expressa na Constituição.
“Por mais legítima que seja a representação religiosa dos parlamentares religiosos, e ela é, as instituições têm de funcionar. Isso significa dizer que um deputado pode apresentar um projeto de seguindo seus entendimentos religiosos, contra o casamento homoafetivo. Mas quando a proposta for apreciada na Comissão de Constituição e Justiça, não é mais individual. É um coletivo que representa a institucionalidade e tem obrigação de barrar por não estar de acordo com nossa legislação”, explica.
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