Realização de conferência telefônica por celular para julgar uma pessoa, afinal condenada à morte e assassinada. Entrada de fuzil em presídio por meio do popular Sedex, da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT). Cobrança de contribuições mensais dos “sócios” (R$ 50 por mês de cada preso e R$ 550 de criminosos que se encontram em liberdade). Caixa para financiar roubos, seqüestros e outras ações violentas mediante concessão de empréstimos, pagos com juros e correção monetária. Fornecimento de “bolsas de estudo” a estudantes de Direito para futuramente defender “juridicamente” a organização.
Tudo isso, e muito mais, consta do relato feito no último dia 10 à CPI do Tráfico de Armas sobre o funcionamento e os métodos do poderoso Primeiro Comando da Capital (PCC). As fontes das informações: o diretor do Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado (Deic) de São Paulo, Godofredo Bittencourt Filho, e Ruy Ferraz Fontes, delegado titular da 5ª Delegacia de Roubo a Banco do Deic.
A comissão, em funcionamento na Câmara dos Deputados, ouviu os dois em reunião reservada, no mesmo dia em que o ex-secretário do PT Silvio Pereira atraía as atenções gerais para um depoimento confuso e praticamente inútil à CPI dos Bingos. Enquanto isso, os delegados descreviam uma entidade criminosa com poder de fogo e grau de organização, em todos os aspectos, impressionantes.
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Bem diferente do que costumam fazer em manifestações públicas, as autoridades policiais paulistas se mostraram impotentes diante da capacidade operacional e financeira do PCC. Queixaram-se da falta de cooperação das empresas operadores de celular. Usando com cuidado as palavras, criticaram a condescendência de alguns juízes em relação a líderes da organização. E, a todo tempo, ressaltaram a eficiência e o poder de expansão da maldita sigla de três letras.
“Está muito difícil desmontar essa estrutura”
Entre outras coisas, os delegados revelam a nacionalização do PCC. Segundo Ruy, o grupo ganhou força em Mato Grosso do Sul e também está presente no Distrito Federal e em pelo menos mais quatro estados, Paraná, Bahia, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, onde é apoiado pelo Comando Vermelho.
Diz Godofredo: “O PCC é forte na capital, mas ele é apoiado em todo o Brasil, aonde vai. Virou realmente uma febre. Ser do PCC é bom negócio. Agora, veja bem, tamanha é a orientação referente a isso que muitas pessoas vão cometer o crime sem muitas vezes saber o que tem de fazer”.
Para o diretor, o governo de São Paulo errou “quando pegou a liderança do PCC e os bandidos mais perigosos e redistribuiu-os pelo Brasil”, porque propiciou a articulação do grupo com facções criminosas que atuam em outros estados.
Segundo Godofredo Bittencourt, o PCC tem efetivo controle sobre os 140 mil presos do estado de São Paulo, é apoiado por aproximadamente 500 mil pessoas fora da prisão, e está por trás dos quase cem casos de extorsão via celular ocorridos diariamente apenas na cidade de São Paulo. Ele acrescenta que mais de 70% da ações de extorsão praticadas com realização de seqüestro no estado “são comandadas dentro da cadeia”.
Ambos descrevem Marcos Willians Herba Camacho, o Marcola, como líder inconteste da organização. O delegado Ruy conta que “ele pretende agora uma estrutura política; ou seja, ele está, digamos assim, trazendo gente que se interesse pela candidatura e apostando, investindo nessa gente para, evidentemente, tentar sua eleição”. E prossegue:
“Eles formam, pagam pela formatura de pessoas nas escolas de Direito. Está lançado no livro, está escriturado em livro. Então, a organização é muito séria mesmo, e a tendência é crescer, porque a gente acaba não tendo como, não conseguindo atingir o objetivo principal que é desmontá-Ia, porque está muito difícil desmontar essa estrutura”.
Ruy também confirma que “Marcola com certeza geriu a questão dos concursos públicos”. Ou seja, patrocinou, inclusive por meio de fraudes (como compra de gabarito), a inscrição de candidatos em concursos públicos para funções de carreira em órgãos de segurança.
Godofredo narra episódio em que um bandido do Rio, que ficou escondido em São Paulo sob a proteção do PCC, debochou dos policiais por usarem pistolas quando ele e sua turma têm fuzis como armas pessoais. Mas enfatiza: “O celular dentro de cadeia é mais perigoso do que dez fuzis na rua”.
Possível estopim
Não bastasse a importância das revelações feitas na reunião reservada, que os leitores do Congresso em Foco estão conhecendo em primeira mão, o encontro acabou se tornando – ele mesmo – parte da história da tenebrosa onda de violência deflagrada em São Paulo.
Ontem, um funcionário terceirizado da Câmara, o operador de aúdio Arthur Vinicius Silva, confessou publicamente que vendeu por R$ 200 dois CDs com a gravação integral (em áudio) dos depoimentos dos delegados. Dizendo-se arrependido, ele fala que o material foi comprado por Maria Cristina de Souza e Sérgio Wesley da Cunha, advogados de Marcola, o líder máximo do PCC.
Arthur, que já perdeu o emprego, conta: “Não tive conhecimento do que tratava o CD. Me ofereceram grana. A idéia do dinheiro me tentou. Infelizmente, não ganho bem. Fui corrompido”. De acordo com o deputado Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP), membro da CPI, o áudio comprado pelo PCC foi reproduzido em pelo menos 40 presídios paulistas.
O Congresso em Foco obteve cópia de 31 páginas de degravação que, conforme parlamentares presentes à sessão, reúnem a quase totalidade dos depoimentos prestados por Godofredo e Ruy. Nelas, não há qualquer referência à decisão do governo paulista de isolar os líderes da organização.
Integrantes da CPI difundiram ontem a versão, reproduzida por toda a imprensa, de que desse modo – isto é, por meio do áudio de R$ 200 – o PCC teria tomado conhecimento da operação planejada pelas autoridades.
A versão é duvidosa. Afinal, 765 presos ligados ao PCC foram transferidos para a penitenciária de Presidente Venceslau (620 km a oeste de São Paulo) na mesma quinta-feira (11) em que o áudio foi levado aos líderes da organização. A função da gravação foi, provavelmente, outra: motivar a organização a reagir, até como forma de intimidar autoridades que demonstraram no depoimento ter muitas informações sobre o seu funcionamento.
“O Godofredo me ligou e disse que não foi isso que gerou tudo, mas que pode ter ampliado ou multiplicado a reação do PCC”, afirma Faria de Sá. Outro membro da CPI, o deputado Neucimar Fraga (PL-ES), completa: “A ligação entre o vazamento da gravação e a onda de violência é uma hipótese, mas uma hipótese que tem muita lógica. Na quarta-feira, os delegados de São Paulo saíram daqui por volta das cinco tarde depois de terem dado o depoimento. Na quinta-feira, o áudio da gravação estava sendo reproduzido nos presídios. Na sexta-feira à noite, começaram as rebeliões”.
Outros trechos dos depoimentos
Quanto aos depoimentos de Godofredo Bittencourt e Ruy Ferraz, não se resumiram à parte gravada. Os deputados conversaram informalmente com eles antes e durante a sessão (que, para isso, foi suspensa por cinco minutos).
Nesses dois momentos, foram repassadas à CPI informações confidenciais a respeito de linhas de investigação perseguidas pela polícia de São Paulo. Entre os dados repassados à comissão, uma lista com 18 advogados vinculados ao PCC. Para os policiais, esses advogados ultrapassam em muito a mera defesa jurídica dos líderes do grupo, agindo como agentes de fato da organização.
Embora agora possa soar irônico, durante a reunião reservada, o presidente da comissão, deputado Moroni Torgan (PFL-CE), demonstrou grande preocupação em evitar vazamentos. No início da sessão, Godofredo chegou a telefonar para um policial que se encontrava do lado de fora da sala – onde faziam plantão dois advogados do PCC – para se certificar de que ninguém estava ouvindo o que se passava lá dentro.
Por três razões o Congresso em Foco teve convicção de que era seu dever levar a público o documento a que teve acesso, embora ele fosse protegido por sigilo. Primeiro, ele já havia chegado ao conhecimento do PCC. Segundo, porque julgamos ser do direito da sociedade ser informada sobre os fatos que ele traz à luz. Terceiro, porque entendemos que sua divulgação pode contribuir para o debate de ações governamentais mais efetivas, num momento em que as autoridades estaduais e federais se mostram incapazes de combater o crime organizado.
Veja aqui a degravação obtida pelo Congresso em Foco
Principais trechos da degravação
Colaborou Paulo Henrique Zarat
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