A decisão da senadora Simone Tebet (MDB-MS) de eliminar do chamado “Estatuto da Gestante” a criação de um auxílio financeiro para filhos de mulheres que forem estupradas, dispositivo apelidado de “bolsa-estupro”, não afasta todas as críticas ao Projeto de Lei 5435/2020. Para especialistas ouvidos pelo Congresso em Foco, mesmo com a retirada desse ponto, ainda há pontos inconstitucionais na proposta.
No início desta semana, a repercussão do projeto, de autoria do senador Eduardo Girão (Podemos-CE), fez com que as hashtags #GravidezForcadaÉTortura e #BolsaEstupro ficassem entre os assuntos mais comentados do Twitter no país. O assunto voltou a ser discutido porque o PL pode ser votado em breve no Senado. A votação, no entanto, depende do parecer da relatora e de acordo entre os líderes. O agravamento da pandemia, no entanto, deve segurar a análise da proposta.
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Tebet ainda não tem previsão de quando vai apresentar o relatório. “Não vai ser nada do que está na proposta original. Meu relatório virá focado na questão de amamentação, parto humanizado e até depressão pós-parto”, afirmou a parlamentar ao Congresso em Foco. A senadora informou não estar preocupada com o projeto no momento, porque existem “outras prioridades” no Congresso em razão da pandemia.
Outros pontos questionados
Segundo críticos do projeto, apesar de apelidada de “Estatuto da Gestante”, a proposta não traz políticas públicas e outros mecanismos que garantam os direitos das mulheres grávidas.
Além disso, o texto prevê, em seu artigo 1º, o direito à vida “desde a concepção”. Esse é um dos pontos que têm gerado críticas entre os defensores dos direitos das mulheres e ativistas pela descriminalização do aborto, já que o direito ao aborto legal em caso de estupro já é previsto pelo artigo 128 do Código Penal Brasileiro, assim como nos casos em que há risco à vida da gestante.
PublicidadeSimone Tebet também disse à reportagem que, para não gerar interpretação de que o projeto poderia retroceder no aborto legal já permitido no Brasil, esse e todos trechos que dizem respeito ao “direito à vida desde a concepção” devem ser substituídos pelo termo mais apropriado juridicamente: “direito ao nascituro”. Segundo ela, o projeto “não avança e nem retrocede” na questão do aborto legal.
No entanto, para Luciana Boiteux, professora de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que também foi autora de ações no STF pela descriminalização do aborto no país, existem “inúmeras outras violações da Constituição na proposta”. “Esse seria o momento de estarmos pensando em auxílios para todas as mulheres grávidas, e nenhuma mulher deveria ser incentivada a gerar o filho do seu estuprador”, argumentou a professora.
Segundo a especialista, que não vê esperanças em uma nova versão do texto, a proposta original também tem um sério problema técnico e legislativo: não indica a fonte de custeio do auxílio. “Pela Lei de Responsabilidade Fiscal, não se pode criar um benefício como esse sem indicar de onde virá o dinheiro para isso, e sem prever o impacto orçamentário e financeiro para o país”, afirma Luciana. Ela também trabalha na elaboração de um parecer contrário ao PL, que será encaminhado ao Senado.
Outro trecho fortemente repudiado por entidades defensoras de direitos das mulheres é o artigo 8º. Esse trecho proíbe qualquer tipo de danos a “criança por nascer” em razão de “ato ou decisão de qualquer de seus genitores”, o que também acabaria por contrariar as leis que já existem, e que autorizam o aborto em algumas situações.
Foco distorcido
A advogada e co-coordenadora do Cladem Brasil (Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher), Sandra Bazzo, também entende que o foco da proposta não é o direito das gestantes. “É uma proposição que vem com um foco muito específico, que não está nos direitos das gestantes, mas sim no que essa proposta chama de ‘criança por nascer’. Se nós olharmos o conteúdo do texto, inclusive a justificativa da proposta, é tudo voltado a criança por nascer, e não à gestante”, alega.
“Tanto a maternidade quanto o aborto são direitos. O aborto legal precisa ser garantido pelo Estado para aquelas mulheres que se encaixem nos casos tratados pela legislação brasileira, como os de estupro. Nada disso deveria ser imposto pelo Estado, assim como não deve ser imposto ou incentivado o dever de manter uma gestação”, acrescenta Sandra Bazzo.
O parecer oficial do Cladem (leia a íntegra) sobre o PL ainda diz que a proposta “confere ao estuprador o status de genitor” e por isso, contraria leis em vigor no Código Civil, no Código Penal, e no Estatuto da Criança e do Adolescente. “As leis em vigor são uníssonas em destituir o poder familiar daquele pai ou da mãe que comete estupro ou outro crime contra a dignidade sexual contra quem igualmente seja titular do mesmo poder familiar”, diz o parecer do órgão.
Paternidade ao estuprador
O artigo 10º do PL também é fortemente criticado pelos opositores, já que o texto obriga a gestante a relatar a paternidade ao genitor –no caso, estuprador–, sob “pena de responsabilidade”. No entanto, o texto não explica qual seria a pena para a mulher que omitir ou negar informações ao pai biológico da criança.
“O genitor possui o direito à informação e cuidado quando da concepção com vistas ao exercício da paternidade, sendo vedado à gestante negar ou omitir tal informação ao genitor, sob pena de responsabilidade”, diz o 10º artigo da proposta.
Para especialistas que defendem os direitos femininos, esse artigo é o mais grave. “Essa obrigação de precisar informar o pai sobre a criança, no caso, o estuprador, sob ‘pena de responsabilidade’, é violento demais. É como se a mulher não tivesse um direito sequer, mas a criança por nascer, e o homem, tem todos”, argumenta Luciana Boiteux.
Outro artigo da proposta que recebeu críticas é o artigo 4º. Esse trecho determina que o SUS irá acompanhar a gestante vítima de violência para prestar “auxílio quanto à salvaguarda da vida e saúde da Gestante e da criança por nascer”. Em nota contrária ao PL (leia a íntegra), a Rede Médica pelo Direito de Decidir (Global Doctors for Choice Brasil) alegou que, por interpretar que a vítima do estupro irá dar a luz a “criança por nascer”, deixa evidente a “tentativa de impor a manutenção da gravidez decorrente de estupro pelo Estado brasileiro”.
“Devemos relembrar que forçar uma mulher vítima de estupro a manter uma gravidez decorrente da violência sofrida é considerado um tratamento degradante e torturante pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas”, diz a nota.
A professora Luciana Boiteux também fez críticas a esse trecho, pois o atendimento no SUS já está previsto em lei. “A nomenclatura utilizada no texto é especialmente inconstitucional e equivocada. Então, mesmo que a questão do bolsa-estupro saia do texto final, ainda existe uma figura jurídica e inconstitucional que não se sustenta à luz da ciência. Também há uma tentativa do projeto de simplesmente ignorar o direito ao aborto legal, que sequer é mencionado. Isso é um grande risco”, conclui a especialista.
Outras reações
Parlamentares também têm se manifestado contra a proposta. Para o senador Humberto Costa (PT-PE), o projeto pode ser usado como “atalho” para eliminar a possibilidade legal do aborto. “Seria um gigantesco retrocesso histórico retirar esse direito das mulheres da nossa legislação”, afirmou. Ele defende que inúmeras propostas ainda poderiam ter sido incorporadas ao texto para garantir direitos a gestante. Para Humberto Costa, a melhor saída para o relatório de Tebet seria o arquivamento.
“A gente imaginava que, sendo o estatuto da gestante, iria garantir uma série de direitos a gestantes, mas não tem nada disso no texto. Por exemplo, poderiam se propor a garantir o vale transporte a mulher grávida, garantir prioridade no atendimento de saúde, e garantir acompanhamento no processo de internação hospitalar”, alegou o senador. “Não vejo salvação na proposta, e acredito que a bancada do PT também vai entender que o projeto precisa ser rejeitado”.
Segundo ele, um dos maiores problemas no PL é a falta de menção a meninas menores de idade que são vítimas de estupros. “A maioria dos estupros no Brasil são feitos com meninas menores de idade, a gente vê isso acontecer todo dia. E eles querem obrigar meninas a serem mães?! Precisamos é criar condições para diminuir cada vez mais os casos de violência de estupro e de agressão contra essas meninas”, defendeu.
A senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP) informou por meio da sua assessoria que tem posição contrária ao projeto. “A senadora acredita que não é o momento de levar essa discussão ao Congresso, porque não seria possível discutir o assunto em plenário virtual. Isso teria que ser debatido nas comissões, com toda a sociedade, e com muita calma”, afirma o gabinete.
A Associação Nacional dos Defensores e Defensoras Públicas (Anadep) também enviou a todos parlamentares nessa terça-feira uma nota técnica contra o PL (leia a íntegra). A associação ressalta que o projeto traz retrocessos nos direitos adquiridos das mulheres.
A proposta deveria ser analisada pelas comissões temáticas do Senado, mas em razão da pandemia de covid-19, as regras especiais de análise das proposições permitem que o PL seja discutido somente pelo Plenário.
A posição do autor
Procurado pelo Congresso em Foco para comentar as críticas e o parecer da relatora sobre o projeto, o senador Eduardo Girão (Podemos-CE), autor da proposta, defendeu que o artigo 11, que previa a “bolsa estupro”, também “aumentava a penalização do estuprador, e tratava de uma opção que poderia livremente ser aceita ou rejeitada por aquelas mulheres que, por questão de foro íntimo, desejassem prosseguir com a gravidez”. Ele confirmou que o trecho será retirado pela relatora.
O senador ainda alegou que os demais artigos do texto “não fazem qualquer alteração no Código Penal, reforçam as políticas públicas de saúde em favor da gestante e ampliam o nível da responsabilidade paterna”. Para ele, o projeto fortalece o pré-natal, “propondo que o acompanhamento ocorra desde o início da gravidez, pois a partir de respaldo científico, podem ser reduzidos drasticamente os riscos de doenças tanto para a mulher gestante quanto para a criança”.
Leia a íntegra da nota de Girão:
> Deputados apostam em Lira para avançar com pauta antiaborto
> STF: detentas trans e travestis podem escolher entre presídio feminino ou masculino
Para todo pseudo conservador que defenda o nascimento de uma criança fruto de estupro, eu desejo que sua filha ou esposa passem por isso. Mas é uma inocência a minha… um sujeito que defende isso só é “conservador cristão defensor da vida” (a frase-padrão deles…) da boca para fora, pois se isso um dia lhes acontecer, eles vão virar as costas para a filha ou esposa estupradas, vão até culpá-las pelo estupro ocorrido, como foi o caso daquele jornalista de m**** que perdeu o emprego depois de ter declarado algo do tipo. Ou alguém aí acha que ele vá assumir a criança que veio de um estupro?