No inquérito que apura esquema de notícias falsas e ataques a ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), deputados federais que foram aliados do presidente Jair Bolsonaro forneceram detalhes sobre o modus operandi do chamado “Gabinete do Ódio”.
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Trata-se de uma estrutura que desfere ataques ofensivos a diversas pessoas, às autoridades e às instituições, com conteúdo de ódio, subversão da ordem democrática e incentivo à quebra da normalidade institucional.
A partir dos depoimentos dos deputados, o relator do inquérito, Alexandre de Moraes, afirmou que provas colhidas e laudos periciais apontam para a real possibilidade de existência de uma associação criminosa dedicada à disseminação de fake news – o “Gabinete do Ódio”.
Coordenação feita por assessores
O deputado federal Heitor Freire (PSL-SP) citou os nomes de Matheus Sales, Mateus Matos Diniz e Tercio Arnaud Tomaz como principais integrantes do “Gabinete do Ódio”. Sales e Arnaud são assessores especiais da Presidência da República e Diniz é assessor da Secretaria de Comunicação Social (Secom). Eles despacham no Palácio do Planalto e, segundo o Portal da Transparência, foram nomeados em janeiro de 2019, com remunerações que superam os R$ 10 mil.
Os três são próximos ao vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), o filho zero dois do presidente. Na linha de frente do confronto e do tom beligerante da família nas redes sociais, o vereador é tido como o responsável pelas estratégias para as mídias digitais.
Freire disse que a atuação é regionalizada, com vários colaboradores nos diferentes estados, a grande maioria sendo assessores de parlamentares federais e estaduais. O uso das estruturas públicas para fins político-ideológicos foi detalhado pelo deputado.
Em seu depoimento, ele afirma que esses assessores parlamentares administram diversas páginas nas redes sociais, incluindo grupos de Whatsapp, e por meio dessas páginas divulgam postagens ofensivas, quase sempre orientados pelo trio de assessores da Presidência.
Por sua vez, o deputado Nereu Crispim (PSL-RS) disse ter percebido que o movimento se organizava para atacar incessantemente a honra de qualquer pessoa que ousasse discordar da orientação do que chamou de “grupos conservadores extremistas”.
Segundo ele, a desmoralização do Supremo, do Senado e da Câmara visava pregar a desnecessidade de existência dessas instituições e, assim, alcançar uma ruptura constitucional.
Dois deputados que foram aliados de primeira hora de Bolsonaro, Joice Hasselmann (PSL-SP) e Alexandre Frota (PSDB-SP), reiteraram as acusações que já vêm fazendo no âmbito da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das fake news, que funciona no Congresso Nacional desde o ano passado.
Coordenação nas redes sociais
Joice, que foi líder do governo do Congresso, afirmou que a organização atuava de forma coordenada nas redes sociais. “Quando surgia alguma postagem ou hashtag ofensiva ao STF ou algum de seus membros, um dos integrantes do grupo retransmitia e em questão de minutos isso era disseminado pelas redes sociais e para inúmeros outros grupos, seja pela atuação de integrantes da organização, seja por utilização de robôs”, afirmou Joice.
Segundo ela, a cúpula dessa organização trabalha com a construção de narrativas e estuda os canais mais eficazes para sua rápida divulgação, contando para isso com o chamado “efeito manada”.
Ao reiterar a tese de uma coordenação nacional, Frota afirmou que a disseminação quase que simultânea, em diversos perfis do Twitter, de estados muito distantes, e com textos idênticos, é prova cabal da utilização de robôs.
Ele indicou que residência situada na QL 19, em Brasília, ocupada atualmente pelo blogueiro Allan dos Santos, pode ser a “sede” da milícia de ataques virtuais. No lugar funciona um estúdio do site “Terça Livre”, que veicula conteúdos de extrema-direita favoráveis ao presidente Bolsonaro.
O deputado Heitor Freire exemplificou a coordenação dos ataques com o vídeo que compara o STF a uma hiena que deveria ser fustigada por um leão, representado pelo presidente Bolsonaro. De acordo com o deputado, a postagem ocorreu de forma quase simultânea em diversas páginas do Facebook.
Outro lado
Ontem, ao comentar a operação, o presidente Bolsonaro afirmou que o “Gabinete do Ódio” é uma invenção. “Inventaram o nome de ‘gabinete do ódio’. Alguns acreditaram e outros foram além, abrindo processos no tocante a isso. Não pode um processo começar em cima de um factoide, em cima de uma ‘fake news’. Respeitamos os demais Poderes, mas não abrimos mão de que nos respeitem também”, disse ele no Palácio da Alvorada.
Na quarta, um dos assessores citados como integrantes da estrutura, Mateus Matos Diniz, retuitou publicação de Filipe G. Martins, assessor especial da Presidência para assuntos internacionais, com uma mensagem em francês “C’est fini.”, que significa “É o fim”, em tradução livre. No texto, Martins escreveu: “Uma das maiores campanhas de assassinato de reputação já promovidas no Brasil foi, justamente, a que consistiu em difundir a idéia de que algumas poucas pessoas são responsáveis por tudo o que é dito a favor do governo e por tudo o que é dito contra os seus críticos e detratores”.
C’est fini. https://t.co/kOZj0lS4xn
— Mateus Matos Diniz (@risemateus) May 27, 2020
No Twitter, Carlos chamou o inquérito de ilegal e questionou as fake news, afirmando que até agora ninguém apresentou um único exemplar das mesmas. Ele também escreveu que as pessoas estão sendo acusadas, perseguidas e incriminadas por um crime que não praticaram e que, segundo ele, sequer existe.
A única coisa que ninguém apresentou até agora foi um único exemplar das tais “fake news” produzido pelas pessoas que estão sendo acusadas, perseguidas e incriminadas por um crime que não praticaram e que sequer existe. @filgmartin
— Carlos Bolsonaro (@CarlosBolsonaro) May 28, 2020
Malabarismo da mídia para defender ato ilegal: Investigação identifica hashtags compartilhadas e pessoas seguidas em comum. NOSSA ISSO É REVELADOR! Crer em mais está NARRATIVA boçal para calar a população não é questão de inocência, mas falta de caráter. MOSTREM AS FAKENEWS!
— Carlos Bolsonaro (@CarlosBolsonaro) May 28, 2020
A reportagem procurou a Secretaria de Comunicação Social da Presidência (Secom) e a Secretaria de Imprensa (SIP), que não emitiram comentário. Também houve tentativa de contato com os assessores citados, sem sucesso. O espaço permanece aberto para esclarecimentos.
No dia da operação da PF, na quarta-feira (27), o chefe da Secom, Fabio Wajngarten, publicou no Twitter a seguinte mensagem: “Alguns jornalistas e apoiadores tiveram seus equipamentos de trabalho apreendidos por decisão judicial e não poderão mais veicular, com liberdade de expressão, suas opiniões. Enquanto isso, alguns veículos continuam produzindo fakenews diariamente sem serem perturbados.”
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