Celso Lungaretti*
No dia 25 de outubro de 1975 morreu sob tortura Vladimir Herzog — como dezenas de outros idealistas que foram vitimados pelos acidentes de trabalho nos porões da ditadura. Isto para não falar dos executados a sangue-frio e dos que tombaram nos tiroteios com a repressão.
Por que sua morte repercute tanto até hoje e, por exemplo, as de Mário Alves e Joaquim Câmara Ferreira são choradas apenas por parentes e velhos militantes de esquerda? Afinal, ambos também eram jornalistas, tiveram uma atuação revolucionária das mais significativas e foram verdadeiramente massacrados pelos algozes. Mário Alves chegou a ser empalado com um cassetete dentado.
Há vários motivos. Primeiramente, chocou e até hoje choca sabermos que Herzog se dirigiu pelas próprias pernas ao encontro da morte, acreditando que sofreria apenas o interrogatório para o qual foi convocado.
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Por que ele não desconfiou de que poderia ter o mesmo destino que tantos tiveram antes dele? Por um motivo simples: em
O auge da tortura se deu no período 1969/73, quando os militares reagiram ao enfrentamento aberto da esquerda estruturando a Operação Bandeirantes e os DOI-Codi’s, que, inicialmente, se incumbiam apenas dos militantes da vanguarda armada. As organizações desarmadas, como o velho PCB, continuaram sendo por bom tempo atribuição dos Deops, que ainda se mantinham dentro de certos limites.
PublicidadeCair na Oban significava não ter garantia nenhuma de sobrevivência, estar totalmente à mercê dos verdugos, enquanto no Deops só se morria por excessos praticados eventual e involuntariamente durante a tortura. Uma pequena diferença, mas significativa para quem caminhava no fio da navalha.
A Oban nasceu clandestina – montada por oficiais das três Armas e policiais civis, com financiamento de empresários fascistas – e foi legalizada após alguns meses, passando a funcionar em quartéis da Polícia do Exército (com exceção de São Paulo, onde continuou nos fundos de uma delegacia da rua Tutóia). Mesmo assim, desde o primeiro momento, tinha mais poder do que a estrutura legal dos Deops, chegando a arrancar presos políticos de suas mãos quando bem entendia.
Para seus integrantes, oferecia ganhos fabulosos e, no caso dos militares, a perspectiva de ascensão meteórica na carreira.
A esquerda armada expropriava bancos, executava operações altamente rentáveis como o roubo do cofre do ex-governador Adhemar de Barros. Então, seus integrantes às vezes tinham somas vultosas consigo. Na VPR e VAR-Palmares, por exemplo, cada combatente dispunha de um substancial fundo de reserva, que deveria ser mantido intocado até uma circunstância extrema, como a de ele ficar descontatado e ter de fugir do país.
Dinheiro, armas, veículos e até objetos de uso pessoal dos militantes dessas organizações eram, por sua vez, expropriados pelos captores, que os dividiam a seu bel-prazer, nunca o restituindo aos proprietários originais.
Além disso, os empresários financiadores da repressão contribuíam para as caixinhas de prêmios pela captura ou morte de militantes clandestinos. Cada revolucionário importante tinha o valor previamente fixado, daí o empenho obsessivo dos rapinantes em chegar até eles. O bolo era dividido segundo a importância de cada qual no esquema repressivo, sobrando algum até para os carcereiros…
Moralização
Com a derrota da luta armada, o presidente Ernesto Geisel pretendia ir desmontando aos poucos esse Estado dentro do Estado. Militar de mentalidade prussiana, não admitia a existência de um poder paralelo “envergonhando a farda”.
Ora, os rapinantes haviam se acostumado com um padrão de vida muito superior ao que lhe possibilitavam seus soldos e já não conseguiam mais viver sem a rapina – tanto que a notória equipe de torturadores da PE da Vila Militar do RJ envolveu-se com contrabandistas em 1974 e acabou sendo presa, interrogada… e torturada, provando um pouco do próprio veneno.
Então, para atrapalhar a “distensão lenta, gradual e progressiva” de Geisel, que incluía a desmontagem do aparelho repressivo de exceção, passaram a efetuar provocações que, esperavam eles, fariam a esquerda reagir. Valia tudo para despertarem o “fantasma do comunismo” que lhes era tão vantajoso.
Assim, uma base do PCB que fora formada na ECA/USP e se expandira com o ingresso de seus membros na carreira de jornalistas – continuando, entretanto, bem longe de representar uma ameaça real ao regime – acabou sendo escolhida como alvo. E o pobre Herzog em primeiro lugar, por ser um professor muito querido, com o qual os universitários presumivelmente se solidarizariam, uma vez preso.
Como a ECA era tida pela repressão como um celeiro de subversivos e nela certamente existiam agentes infiltrados, é difícil acreditar que essa base não constasse dos relatórios policiais havia muito tempo. O fato é que, até o final de 1975, não interessou estourá-la.
Aí, de repente, a repressão se deu conta de que a ditadura começaria a ser derrubada pela insidiosa infiltração subversiva na TV Cultura, com seu 1% de audiência em São Paulo…
Vlado, coitado, não levou em conta os bastidores do regime e seguiu confiante para o matadouro. Até pela estima que lhe devotava o governador Paulo Egydio Martins, estava certo de que em seu caso não abririam a caixa de ferramentas. Quão pouco valia a vida de um homem!
Os torturadores, ao excederem a dose, despertaram a indignação mundial – para o que também concorreu a ascendência judaica da vítima, repetindo em escala ampliada o que já sucedera no final de 1969, quando da morte sob torturas de Chael Charles Schreier, militante da VAR-Palmares. Judeus são muito sensíveis à morte dos seus em circunstâncias semelhantes às do Holocausto.
Geisel e seu fiel escudeiro Hugo de Abreu aproveitaram a chance para minar o DOI-Codi sem despertar resistências na caserna. O presidente deu o ultimato de que uma morte como aquela não deveria se repetir. Antes que se completassem três meses, os torturadores erraram a mão de novo, levando à morte o metalúrgico Manoel Fiel Filho, também do PCB. Forneceram a Geisel motivo suficiente para exonerar o comandante do II Exército Ednardo D’Ávila Melo e desmontar o DOI-Codi, robustecendo seu projeto de abertura política.
Por último, devem ser lembrados o cansaço dos cidadãos que viviam sob terror policial desde 1969 e já não agüentavam mais o clima de autoritarismo e intolerância, mesmo porque, visivelmente, não havia mais uma ameaça verdadeira ao regime; a resistência dos jornalistas, que afinal se avolumou; e a coragem dos líderes religiosos de três confissões, que correram todos os riscos para, com a realização de uma missa ecumênica pela alma de Herzog na catedral da Sé, impedirem que mais esse assassinato fosse acobertado pela ditadura.
Atentados
Nem assim as tentativas de inviabilizar a redemocratização do Brasil cessaram de todo. Em 1976 houve atentados a bomba contra o semanário Opinião, a ABI, a OAB e a residência de Roberto Marinho, além do seqüestro e espancamento do bispo de Nova Iguaçu e do massacre dos militantes da gráfica do PCdoB. Em 1979/81, a ação dos grupos paramilitares de direita se intensificou, com novos ataques a entidades e cidadãos ilustres (como o jurista Dalmo de Abreu Dallari) e até os bizarros incêndios de bancas de jornais em que eram vendidas publicações alternativas.
Até que, em 30 de abril de 1981, o feitiço virou contra o feiticeiro: a bomba explodiu no colo do terrorista fardado que pretendia provocar pânico de conseqüências imprevisíveis durante em show musical no Riocentro. A maré mudou e a redemocratização foi consolidada.
Vlado merece todas as homenagens que continua até hoje recebendo e outras mais. É triste, entretanto, que não seja prestado tributo semelhante aos combatentes que enfrentaram a ditadura de armas na mão e morreram às centenas (inclusive executados friamente em aparelhos clandestinos da repressão, como a “Casa da Morte” de Petrópolis/RJ).
Enquanto a Resistência Francesa é cultuada em seu país, o Brasil continua dividido em relação ao papel dos que enfrentaram pela via armada os militares que derrubaram um presidente legítimo, fecharam o Congresso, cassaram mandatos, rasgaram a Constituição, proscreveram partidos e organizações da sociedade civil, praticaram a censura, torturaram, mutilaram, mataram e ocultaram cadáveres.
Os que ousaram opor-se ao poder de fogo infinitamente superior desses usurpadores despóticos são – e deveriam ser sempre lembrados como – heróis e mártires. Não basta o reconhecimento oficial, corporificado nas anistias federal e estaduais. Há muito ainda o que se fazer em termos de História e na batalha pela opinião pública.
Um bom começo seria o reconhecimento oficial de que os inquéritos policiais-militares da ditadura não servem para respaldar acusações a ninguém nem para definir o papel histórico de nenhum dos antigos resistentes, pois foram contaminados pela prática generalizada da tortura; idem, os julgamentos a que civis foram submetidos em auditorias militares, sob leis de exceção e sem nenhuma possibilidade real de defesa.
* Celso Lungaretti, 57 anos, é jornalista e escritor. Mantém os blogs O Rebate, em que publica textos destinados a público mais amplo; e Náufrago da Utopia, no qual comenta os últimos acontecimentos.
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