Respaldados pela visibilidade gerada pela Operação Lava Jato, delegados da Polícia Federal (PF) movimentam-se no Congresso Nacional para aprovar um antigo sonho de consumo: a proposta de emenda à Constituição (PEC 412/2009) que garante autonomia financeira e administrativa à corporação. A mudança, segundo a categoria, aumenta a independência da PF em relação ao Ministério da Justiça e afasta o risco de eventuais interferências políticas. Os delegados buscam apoio popular, por meio de um abaixo-assinado que circula nas manifestações de rua em todo o país, para acelerar a tramitação da PEC na Câmara, onde está estacionada desde que foi apresentada, há sete anos.
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O esforço deles, no entanto, pode não ser suficiente para que a proposta vire realidade. É o que mostra reportagem da nova edição da Revista Congresso em Foco, produzida em parceria com a agência Pública. O texto enfrenta a oposição de integrantes do Ministério Público, do governo federal e da própria PF, que argumentam que a autonomia dará força excessiva aos delegados em vez de fortalecer a polícia como um todo. O passo inicial para desengavetar a PEC foi dado no começo de março, quando uma comitiva da categoria procurou o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), para pedir celeridade na votação.
Réu no Supremo Tribunal Federal (STF) por corrupção e lavagem de dinheiro, em decorrência das investigações da Lava Jato, Cunha se comprometeu a criar uma comissão especial para examinar o mérito da medida assim que o texto passar pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ). Essas duas etapas antecedem a votação em plenário, o que só deve ocorrer no segundo semestre.
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Conflito armado
PublicidadeAté lá, o embate entre delegados e policiais federais deve esquentar. Enquanto os primeiros aproveitam as manifestações contra o governo para reunir apoio em favor da autonomia, os agentes e ocupantes dos demais cargos da corporação – peritos, papiloscopistas e escrivães – prometem novos protestos contra a PEC, a exemplo do que fizeram no ano passado. Segundo eles, a aprovação da medida representa risco à democracia por conceder superpoderes ao comando da Polícia Federal.
“Eles tentam aproveitar esse momento de comoção e apoio para atender a um pleito dos delegados, mas os outros cargos sequer participaram das discussões”, critica o presidente da Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef), Luís Boudens, expondo a divisão dentro da PF. “Essa pauta tem certo carisma, especialmente em época de Lava Jato, mas a verdadeira autonomia, a de investigar, nós já temos.”
De olho em um regime de progressão de carreira que contemple outros cargos nos postos de direção, a Fenapef teme que o texto final da PEC 412 consolide a hegemonia dos delegados no comando da PF e sepulte iniciativas em sentido contrário. “A multidisciplinaridade do trabalho da polícia exige uma gestão especializada em certos assuntos, já que temos uma amplitude enorme de atribuições que não poderiam ser geridas somente por um profissional formado em direito”, justifica Boudens.
O discurso do presidente da Fenapef é ironizado por Anderson Gustavo Torres, diretor parlamentar da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF). “E vão botar quem de diretor-geral da PF, o escrivão?”, diz. “A PEC 412 facilita, melhora o trabalho da polícia. Ela não representa a independência da Polícia Federal, que continuará vinculada ao Poder Executivo, seguindo as mesmas regras, trabalhando da mesma forma”, acrescenta.
Ele admite que a autonomia investigativa já existe, embora a ADPF tenha iniciado em março a coleta de assinaturas de apoio a uma “Carta aberta ao povo brasileiro”, na qual defende que a PF só poderá continuar a investigar a corrupção e impedir os desvios escandalosos dos recursos públicos se a PEC for aprovada.
Delegado cedido ao gabinete do deputado Fernando Francischini (SD-PR), Anderson Gustavo diz que o atual modelo deixa brechas para interferências políticas ao garantir ao Executivo a palavra final sobre as nomeações de diretores e superintendentes da corporação e a liberação de diárias para operações mais longas, além da possibilidade de alterar a proposta orçamentária definida pela PF. “É um superpoder eu nomear os meus auxiliares, ou indicar o meu orçamento?”, questiona o diretor parlamentar da associação dos delegados.
Para o deputado Francischini, que é delegado federal, a mudança tem poder de melhorar a qualidade do trabalho da Polícia Federal. “Se queremos uma polícia de Estado, precisamos colocar na Constituição que a Polícia Federal tem a independência dela. Ela faz o orçamento – claro, que tem que ser aprovado pelo Congresso Nacional –, mas depois executa, sem precisar de autorização de órgãos políticos para isso”, diz o parlamentar.
Assim como a ADPF, o parlamentar diz que a rejeição dos agentes à PEC 412 é fruto de “interesse corporativo e sindical”. “Tenho certeza que não é da maioria, inclusive, mas a disputa sindical faz parte da democracia”, afirma.
Peritos e procuradores
Também contrária à PEC 412, a Associação Nacional de Peritos Criminais Federais (APCF) critica a estratégia dos delegados de coletar assinaturas nas manifestações contra o governo. “Os peritos criminais federais são contra o uso político de operações policiais para fins de promoção de interesses classistas, como se vê na atual campanha da PEC 412 promovida por entidades de delegados”, diz a direção da entidade em nota. Segundo a APCF, o texto discutido pela Câmara oferece “enorme risco” à independência da perícia criminal e, consequentemente, à isenção da prova material.
Embora a discussão em torno da proposta ainda esteja restrita aos bastidores na Câmara, a oposição à autonomia não se limita às demais carreiras da PF. Em nota técnica, a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) alerta que a polícia não pode ser tratada como um poder à parte. “É, sem dúvida, mero órgão do Poder Executivo, e supor a criação de uma polícia independente atenta contra o princípio da separação de poderes”, afirma trecho do documento.
A ANPR avalia que a aprovação da autonomia da Polícia Federal possa gerar uma onda de pedidos semelhantes por parte das outras polícias e, ainda, retirar o controle externo do Ministério Público sobre a autoridade policial.
O Palácio do Planalto teme que a mobilização dos delegados nas ruas, favorecida pelo discurso do combate à corrupção, impulsione a tramitação da matéria. A PEC é vista pelo governo como corporativa e desnecessária, uma vez que a autonomia investigativa já existe. O Executivo se movimentou para atender em parte aos desejos dos delegados, com a sanção da Lei 13.047, de 2014, originária da Medida Provisória 756/2014, que conferiu a eles a exclusividade no acesso aos postos de direção.
Parecer pela aprovação
O deputado João Campos (PRB-GO), relator da matéria na CCJ e aliado de Eduardo Cunha, adiantou à Revista Congresso em Foco que seu parecer será pela admissibilidade da proposta. Cabe à comissão examinar apenas aspectos constitucionais e jurídicos da PEC, cujo mérito será discutido por um colegiado a ser criado especificamente com essa finalidade.
“A autonomia investigativa já está garantida em lei, mas as demais autonomias almejadas pelos delegados são necessárias porque o governo usa de caminhos oblíquos para interferir no trabalho da PF”, afirma o deputado, que é delegado da Polícia Civil. “A nossa disposição é de apresentar o parecer tão logo a CCJ retome os trabalhos.” João Campos diz esperar somente a configuração dos membros da comissão para formatar a versão final do texto.
O presidente da Fenapef, Luís Boudens, diz que a Associação dos Delegados da Polícia Federal encaminhou à Câmara uma proposta de substitutivo que deverá ser apresentada mais adiante, próxima à votação pela comissão especial ou mesmo no plenário. A estratégia é negada tanto pela ADPF quanto pelo relator na CCJ. No texto, segundo a federação, estarão consolidadas outras mudanças no funcionamento da polícia, o que mais uma vez contraria o interesse dos demais cargos da corporação, que defendem uma carreira única. Essa alteração está contemplada na PEC 361/2013, que tramita apensada à PEC 412 e é rejeitada pelos delegados – o que evidencia um possível endurecimento dos embates durante a tramitação conjunta das matérias.
Controlar ou não controlar?
A discussão sobre a autonomia da Polícia Federal ganhou o noticiário e as redes sociais com a saída de José Eduardo Cardozo do Ministério da Justiça. Criticado pelo ex-presidente Lula e por outros petistas por “não controlar” a PF, Cardozo assumiu a Advocacia-Geral da União (AGU). Diversas entidades divulgaram nota manifestando preocupação com interferência política nas investigações policiais. O assunto movimentou o Twitter e o Facebook.
Procurador da República, o novo ministro da Justiça, Eugênio Aragão, causou polêmica em uma de suas primeiras entrevistas. “Cheirou vazamento de investigação por um agente nosso, a equipe será trocada, toda. Não preciso ter prova. A Polícia Federal está sob nossa supervisão”, afirmou o ministro à Folha de S.Paulo, em 18 de março, um dia após ser empossado. Acusado por associações policiais de tentar intimidar os investigadores da Lava Jato, Aragão divulgou comunicado em que se comprometeu a dar “todo apoio e amparo ao cumprimento da missão policial”.
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