Por Tiago de Aragão, cineasta *
Realizar um documentário implica uma série de desafios. Destaco aqui dois tipos incontornáveis. O primeiro se dá na difícil tarefa de tomar decisões técnicas e estilísticas, pois são incontáveis os caminhos possíveis para a construção estética de um filme, restando-lhe dar ao seu projeto um dos possíveis rumos que resultarão em uma melhor obra.
O segundo tipo são as dificuldades que o mundo a ser filmado lhe trará, desde a abordagem das personagens, incluindo constrangimentos e timidez, até a autorização para acessar os espaços planejados. Inclusive quando estes são públicos. Eu me atenho a esse segundo tipo para compartilhar a experiência de realizar um curta metragem com locações no Congresso Nacional, a dita Casa do Povo.
As dificuldades construídas para tolher o acesso de um grupo são vividas de maneiras diferentes, dependendo da sua posição no mundo. Ela pode ser mais agressiva e latente. Sendo as personagens do nosso filme, Entre Parentes, indígenas brasileiros de diferentes etnias, essas barreiras se muniam de caráter político e discriminatório.
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Aos que conhecem o cotidiano dos corredores das comissões do Congresso Nacional, tanto do Senado como da Câmara, é possível verificar que os indígenas são um dos grupos populares que mais se fazem presente nesse espaço. Vale lembrar o abril de 2013, com a ocupação indígena no plenário da Câmara, que antecedeu as Jornadas de Junho daquele ano, que hoje são elencadas para pensar o contexto político brasileiro.
O movimento indígena estava ali com uma ação que podemos considerar de vanguarda. Cabe lembrar também que, há 15 anos, a Mobilização Nacional Indígena realizava o Acampamento Terra Livre na Esplanada dos Ministérios. É perene a mobilização indígena em frente da constante ameaça aos seus direitos nos espaços políticos do Legislativo, Executivo e Judiciário. Durante o ano, essa presença se dá de maneira mais ordinária, mas duradoura, com mobilizações envolvendo grupos menores, os indígenas se fazem presentes no Congresso Nacional.
É raro haver reuniões de comissões em que a temática indígena é discutida sem a presença do movimento na Casa do Uma das principais batalhas dos índios é barrar a PEC 215, que dificulta a demarcação de terras.
O nosso filme nasce da ideia de documentar a tentativa de participação popular nos espaços do Legislativo federal. O movimento indígena surge assim como um caso representativo, principalmente no que tange à organização para mobilizar a pauta no Congresso e como um exemplo latente das dificuldades colocadas para esse exercício democrático. Assim, surgem as dificuldades de acesso ao espaço para nossas personagens.
O filme passaria a ser sobre a incomunicabilidade de grupos organizados de parlamentares em torno de um interesse específico, as bancadas, com grupos populares sem poder econômico e sem representatividade nos quadros políticos da Câmara. O palco eleito para a criminalização dos movimentos relacionados à luta pelo direito à terra, conjuntamente ao movimento indígena, os movimentos de quilombolas e de luta pela reforma agrária, foi a Comissão Parlamentar de Inquérito da Funai e do Incra 2.
A numeração da CPI é registro de um fato inédito e que descumpre o regimento da Casa. Isso porque foi realizada uma nova comissão de inquérito sobre matéria já tratada. Este é apenas um dos desmandos promovidos pela bancada ruralista na orquestração da CPI, que pedia o indiciamento de 67 pessoas, entre indígenas, antropólogos, integrantes de ONGs e servidores públicos. Com ampla maioria de ruralistas na CPI, o andamento dos trabalhos não precisava contar com a presença da oposição nem para garantir o quórum, comum estratégia para protelar a tramitação quando se está em minoria.
Com o quórum e a votação garantidas, a tranquilidade da bancada ruralista era ímpar. Para “garantia da ordem nos trabalhos”, o próximo passo seria impedir as personagens acusadas no relatório de assistirem e participarem das audiências. No último mês de tramitação, próximo à votação do relatório, as reuniões passaram a ocorrer basicamente apenas com as presenças de parlamentares, assessorias, imprensa e nossa equipe do documentário.
Aos 67 indicados para indiciamento e demais interessados, a entrada no plenário estava deliberadamente proibida. Durante as filmagens, o Congresso Nacional vivia um dos seus momentos de maior cerceamento de entrada de populares. Na Câmara dos Deputados, dois importantes projetos da agenda do governo tramitavam quase com exclusividade, a PEC da Previdência e o projeto de lei da reforma trabalhista.
O temor por manifestações e interferências externas no andamento dessas propostas fez o aparato policial aumentar, assim como as barreiras impostas ao cidadão sem crachá. Quebrando esse caráter de exclusividade, ocorria também a CPI da Funai e Incra 2, o que indica o poder do setor ligado ao agronegócio, que manteve a tramitação da comissão de inquérito mesmo enquanto o Congresso Nacional vivia às voltas com as duas grandes pautas.
O filme de certa forma passa a ser sobre a incomunicabilidade. Falta de diálogo entre os parlamentares e os indígenas que viam na CPI mais um ataque aos seus direitos. E falta de comunicação entre os parlamentares favoráveis e desfavoráveis à forma como se dava o inquérito, em condições desiguais dadas pela desproporcionalidade da composição da comissão. Além de ser maioria entre os deputados, a bancada ruralista estava representada nas relatorias e na presidência da comissão.
O filme estava previsto para ser realizado majoritariamente nos corredores do Congresso. Mas passa a ocorrer também nos detectores de metais, nas entradas protegidas por policiais, nas ruas que ainda restam aos movimentos sociais, num espaço geograficamente ampliado de luta. A experiência de filmar a mobilização indígena frente ao Congresso Nacional trouxe a possibilidade de observar um importante exemplo de participação política, de um grupo desfavorecido econômica e politicamente, mas que luta pela manutenção dos seus direitos garantidos constitucionalmente.
Os embates políticos demonstram a força do movimento indígena, como no caso da PEC 215. Mesmo tramitando desde 2000 com amplo apoio e investimento do setor do agronegócio, a proposta segue sendo obstruída. Ela foi arquivada em 2014, mas retomada na atual legislatura. Por vezes, a vitória no Legislativo passa pela não aprovação de projetos, tendo em vista a manutenção de conquistas de direitos históricas.
* Tiiago de Aragão é diretor do filme “Entre Parentes”, obra classificada para a 51ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, cujo cerimônia de encerramento se dá neste domingo (23). O artigo foi originalmente publicado na edição 29 da Revista Congresso em Foco.
Se houver mesmo proibição, acho medida absurda e inadmissível, salvo se pretenderem entrar armados de arcos e flexas, tacapes e zarabatanas, evidentemente.