As eleições deste ano acontecem em um contexto de pandemia, em que o isolamento social torna ainda mais relevante o papel da Internet para a informação dos eleitores, formação da chamada opinião pública e realização das campanhas. Parte significativa do debate eleitoral já está sendo travada em poucas plataformas digitais, cujo negócio está assentado na coleta e tratamento de dados pessoais para o direcionamento da informação e da propaganda eleitoral.
No Brasil, onde o acesso à internet é desigual, predominando nas classes C, D e E o uso limitado da rede em poucas aplicações, também ganhará mais relevância o compartilhamento de conteúdos por aplicativos de mensageria instantânea, como o WhatsApp e o Telegram. Este contexto traz desafios novos e bastante concretos não apenas para as milhares de candidaturas que disputam o voto dos eleitores, mas para os operadores do sistema de Justiça Eleitoral, para os partidos políticos, para o setor privado e, também, para a nossa democracia.
Para discutir essas questões, incluindo os riscos e oportunidades em jogo num processo eleitoral centrado na Internet, estreamos hoje (16) o especial “Eleição nas Redes”, fruto de uma nova parceria do Congresso em Foco com o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, com o apoio da Coalizão Direitos na Rede (CDR). Daqui até o final do segundo turno, traremos semanalmente para este espaço artigos de especialistas e pesquisadores do campo dos direitos digitais e de jornalistas que estão acompanhando o pleito nos municípios atentos a esses temas.
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Dentre eles, a questão da produção intencional de desinformação e seus impactos no jogo eleitoral. Como aponta o documento “Eleições, Internet e Direitos”, lançado recentemente pela CDR, se este já foi um problema detectado nas eleições majoritárias de 2014 e de 2018, agora torna-se uma desafio ainda maior num cenário de um pleito descentralizado em mais de cinco mil municípios, o que dificulta inclusive a fiscalização por parte do sistema de Justiça.
A pressão por respostas às chamadas fake news fez com que uma série de medidas tenham sido adotadas pelas plataformas. Nas eleições de 2018, os esforços das empresas centraram-se sobretudo na parceria com agências de checagem para a classificação de notícias em escalas entre verdadeiro e falso e a moderação dos conteúdos a partir dessa classificação, incluindo aí a exclusão de páginas e perfis considerados “mal-intencionados” ou disseminadores de spam. Os acordos, entretanto, não impediram a disseminação de notícias falsas. Balanço divulgado pela Aos Fatos no dia 31 de outubro de 2018, depois de terminada a campanha, mostrou que a organização de checagem “desmentiu” 113 “boatos” durante as eleições, número pequeno comparado à quantidade de desinformação que circulou na rede. Além disso, o alcance da verificação foi bem menor do que o das notícias originais.
PublicidadeMesmo quando checadas, muitas das informações falsas continuaram sendo disseminadas nas redes sociais, diante da omissão da Justiça Eleitoral e das plataformas digitais. O caso mais emblemático foi o do “kit gay” que, mesmo classificado como falso e proibido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), voltou a ser veiculado pela campanha de Bolsonaro.
Em 2019, o Twitter anunciou que não mais aceitará publicidade política de qualquer tipo em sua plataforma. O argumento é que os anúncios políticos na Internet utilizam otimização baseada em aprendizado de máquina de mensagens e segmentação múltipla, além de informações enganosas não verificadas. Outras plataformas, entretanto, não adotaram a mesma medida, e não está claro como a Justiça Eleitoral vai lidar este ano com o impulsionamento de conteúdos políticos nas redes que, mesmo não identificados como propaganda eleitoral, influenciarão significativamente na formação do eleitorado.
Violência política nas redes
Nas eleições, o fenômeno da desinformação se conecta em grande medida com o crescimento da violência política e do discurso de ódio. Segundo dados da ONG SaferNet, o contexto eleitoral está relacionado a uma explosão de denúncias de racismo, xenofobia, apologia e incitação a crimes contra a vida na internet. Denúncias recebidas pela SaferNet cresceram 21,27% em abril de 2020 em relação ao mesmo período no ano passado – e isso deve se agravar em relação a mulheres que ocupam a esfera pública e que disputam as eleições.
A pesquisa “Perfil das Prefeitas no Brasil: mandato 2017-2020”, que entrevistou 314 mulheres eleitas para as administrações locais, aponta que a segunda maior dificuldade de acesso e permanência de mulheres na política é o assédio e as violências simbólicas no espaço político. Cerca de 53% delas afirmaram ter sofrido assédio ou violência política, boa parte delas no ambiente digital.
Nas eleições de 2018, a iniciativa brasileira Tretaqui.org desenvolveu um canal para o recebimento de denúncias sobre candidaturas que foram atacadas ou que fizeram uso de discurso de ódio como estratégia de marketing político. Foram coletadas 564 denúncias de links (a maioria de posts em redes sociais e algumas notícias) que indicavam violações principalmente contra candidaturas que atacavam grupos da população (mulheres, especialmente feministas, e LGBTs), além de apologia e incitação à violência (especialmente contra criminosos).
A Coalizão Direitos na Rede acredita que o discurso de ódio contra candidaturas tem o objetivo exclusivo de silenciar expressões representativas de grupos minoritários, servindo apenas para o acirramento do debate político e a polarização no país, além de fomentar a violência dentro e fora dos pleitos eleitorais. Praticado por candidaturas, ele revela sua instrumentalização como ferramenta de marketing político eleitoral, adotada não apenas por campanhas isoladamente, mas também por partidos, valendo-se principalmente das redes sociais para sua propagação.
Dados pessoais e direcionamento de conteúdos
O direcionamento e articulação de práticas de desinformação e violência política conta com uma ferramenta importante: o uso de dados pessoais para a produção e direcionamento de conteúdos. O aprimoramento das capacidades tecnológicas de coleta, processamento e armazenamento de dados, combinado com sua incorporação em ferramentas de marketing digital, favoreceu a crescente adoção por campanhas eleitorais de estratégias que se valem do uso de dados pessoais de eleitores.
Adotando muitas vezes ferramentas desenvolvidas no âmbito do marketing comercial para convencer consumidores a adquirir produtos e serviços, campanhas passam a se valer de bancos de dados e ferramentas de coleta e análise de dados como parte de suas estratégias para conquistar eleitores. Coletados em bancos de dados públicos, da análise de mídias sociais, de pesquisas internas e de outros bancos de dados adquiridos de terceiros ou recebidos de clientes, os dados pessoais podem auxiliar campanhas a conhecer melhor seu potencial eleitorado, definir narrativas e mensagens, direcionar e microdirecionar anúncios políticos, enviar propaganda eleitoral e material de campanha e se comunicar com eleitores.
Os próprios disparos em massa em aplicativos de mensagens privadas nunca teriam sido possíveis nas eleições em 2018 – e não continuariam na atual campanha, mesmo sendo ilegais – sem o tratamento de números de telefone dos destinatários dos disparos.
Especialistas em proteção de dados pessoais lembram que, se por um lado a possibilidade de uma comunicação mais direcionada pode aproximar a campanha do eleitor, estabelecendo uma comunicação mais relevante para cada um e que favoreça seu engajamento no debate público, por outro lado, o uso indiscriminado de dados pessoais e a adoção de estratégias de marketing que tratam o eleitor como mero consumidor colocam uma série de novos desafios e riscos a direitos fundamentais e à integridade de processos eleitorais.
Ameaças à privacidade e à proteção de dados pessoais de eleitores somam-se a riscos de violações à autonomia do eleitor de se informar e decidir. Ao conhecer melhor aquele eleitor ou aquele grupo de eleitores, campanhas passam a ter maior poder de persuasão e até de manipulação sobre esse eleitorado. Da mesma forma, a possibilidade de direcionamento e microdirecionamento pode favorecer divisões no eleitorado e no debate público, além de reduzir a transparência sobre a totalidade das campanhas, diante da possibilidade de que mensagens contraditórias sejam veiculadas paralelamente a públicos distintos.
Nas eleições de 2020, este cenário se torna ainda mais complicado, diante da recém entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados e da ausência de uma ponte entre o regime de proteção de dados e a legislação eleitoral. Estes e outros desafios serão discutidos neste especial ao longo da campanha, esperando que nossas análises contribuam de alguma maneira para um processo eleitoral democrático e que reflita a vontade autônoma dos eleitores de todo o país.
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