Marcus Vinicius de Azevedo Braga*
As cenas do assassinato brutal de Beto Freitas, um cidadão negro que foi as compras no mercado em Porto Alegre e que não voltou para casa, são chocantes. O século 21, que foi objeto de tantas promessas no imaginário humano, ainda amargamos esses cenários lamentáveis, de questões ainda não superadas.
Notas de repúdio, manifestações, comentários dos jornalistas pululam nas redes sociais, nosso instrumento de catarse predileto, em um filme que se repete, de tantos outros acontecimentos similares, talvez agora com o diferencial do registro em vídeo, que alimenta pedidos de punição para os agressores e para a empresa envolvida. Mas, seria apenas isso o suficiente?
É possível enxergar para além desse lamentável ocorrido, buscando adentrar as relações entre os atores envolvidos. Não se aprofundando nas questões históricas do racismo estrutural e na necessidade de advocacy dessa pauta em uma sociedade castigada por anos de escravidão, é importante acrescentar outras estratégias para combater esse fenômeno. Faz-se necessário discutir como se instrumentalizar essa pauta, para que a realidade se modifique, saindo do pontual, para o sistêmico, para que se colham avanços estruturais.
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A visão institucionalista pode ser uma abordagem que ajuda a destrinchar essas discussões. “Instituições importam!” é a máxima clássica dos autores que se vinculam a essa linha, na qual a situação atual é reflexo não só da trajetória histórica, mas também do desenho das instituições relacionadas. Entende-se aqui as instituições como as “regras do jogo” no que se refere às relações entre pessoas, organizações e governos. Cuida do modo de coordenar e mediar as relações entre os atores, na busca do desenvolvimento. Para saber mais, recomenda-se, entre outros, a leitura da obra clássica: “Por que as nações fracassam. As origens do poder, da prosperidade e da pobreza”, de Daron Acemoglu e James A. Robinson.
PublicidadeEssa trajetória do desenvolvimento implica também na proteção de valores sociais. Mas que valores seriam esses? Aqueles que a sociedade, com suas contradições e matizes, faz sacrifícios pela sua materialização, muitas vezes fruto de dores coletivas, como no caso da emergência de organizações para resguardar certos valores ao fim da segunda grande guerra, em 1945.
Nos organizamos, e pautamos nossas instituições, tendo como base esses valores, que se modificam ao longo do tempo, de forma que algo que foi tolerado em um passado, hoje é combatido. E isso se dá de forma concreta.
Pode-se citar o meio ambiente, os direitos humanos, os direitos trabalhistas, os direitos dos animais e o combate à corrupção, como alguns exemplos de valores que, pelo menos no discurso, surgem como relevantes nesse início de século 21, muitos frutos de percepções diante de problemas no século anterior. O desrespeito a esses traz consequências para a comunidade, refletidos em nível macro pelo aquecimento global, surgimento de doenças, racismo, preconceitos de toda ordem, relações violentas, regimes análogos à escravidão, maus tratos aos animais e o desvio de recursos públicos.
Proteger esses valores carece de estratégias, que mexam na dinâmica das instituições e que atinjam a sociedade, e uma parcela específica dela: os mercados. Pode-se destacar, nesse desiderato, o trinômio: normas, regulação e compliance.
Normas que tornem positivadas em leis e decretos as condutas a serem observadas e aquelas vedadas, bem como as punições relativas aos desvios. A regulação, por meio da atuação estatal, de órgãos específicos, que utilizando-se de sanções, incentivos e pela edição de normativos de caráter operacional, atuem em determinados mercados, mediando essas relações, para que seja observada a livre concorrência sem afetar esses valores.
O terceiro componente nessa relação é o compliance, entendido aqui como o conjunto de ações que as organizações privadas adotam para se adequar a essas regras e a essa regulação, visando com essa aderência, com essa mudança cultural, evitar a punição pecuniária de multas ou outros tipos de sanção, como o extremo do banimento do mercado, ou ainda, tentando fugir do prejuízo de imagem, que se reflita financeiramente em boicote de sua marca pela sociedade que não quer realizar negócios com quem tem posturas que trazem consequências negativas para esse mesmo convívio social.
Ao se traduzir a triste ocorrência na capital gaúcha em uma visão preventiva de novas ocorrências, verifica-se que é preciso atuar nos diplomas legais que envolvam o racismo, para identificar que lacunas ou deficiências de aplicação estejam presentes.
Ainda, é necessário identificar as oportunidades de melhoria na atuação dos agentes estatais que regulam não só a questão do racismo, dentro da agenda de direitos humanos, como as relações transversais nas empresas que têm interação com o público e as que a elas prestam serviços de segurança. E, por fim, é preciso entender o que está faltando nas políticas materializadas em programas no interior dessas empresas, para dar conta desse problema.
De forma resumida, buscou se apresentar os mecanismos institucionalistas para questões dessa natureza em uma linha preventiva e sistêmica. Uma vez que exista uma percepção de que este é um valor a ser protegido. Tal visão direciona a pressão popular em suas diversas formas para o fortalecimento estrutural dos atores no enfrentamento dessa questão, seja por leis melhores, por uma melhor atuação dos que por elas velam, e pela adoção dos atores do mercado de políticas internas que, para além de palavras, realmente mitiguem a ocorrência desses problemas.
A teoria é bela, como não poderia deixar de ser. Trata-se de uma forma de interpretar a realidade. Mas, no mundo real, conflituoso e contraditório, emergem normas como resposta a escândalos que padecem de dificuldade de implementação pelo seu aspecto draconiano. Os atores estatais responsáveis por determinadas regulações não são claramente definidos, nos conflitos de relações interfederativas e nas crônicas faltas de estrutura e o uso do poder do cliente de escolha vinculado a valores empresarias é ainda uma cultura que engatinha no país.
A questão que paira é que apesar da comoção, a percepção institucionalista é de que apenas punir os culpados pode não ser o suficiente para gerar incentivos que inibam essas situações no futuro. Existe a necessidade de pensar de forma mais ampla, na luta por avanços nas regras do jogo, e no jogo em curso. E isso implica em cobrar das esferas governamentais leis exequíveis e efetivas, que deem suporte à políticas públicas implementadas por órgãos especializados, e que induzam as empresas a se robustecer nas suas estruturas internas para garantir a observância desses valores. É preciso ter fé, não em um sentido transcendental, nas políticas públicas, como forma de resolução desses problemas.
Se há um desejo da sociedade de banir o racismo e o preconceito, de preservar o meio ambiente, de garantir relações de trabalho dignas, de proteger os animais de maus tratos e ainda, de garantir a boa aplicação dos recursos públicos, esse anseio precisa se converter em regras, políticas públicas e mobilizações das empresas. O nome já diz: um valor! No mundo institucionalista, não existe espaço para voluntarismo ou ingenuidade. A materialização depende de um conjunto de mecanismos, por meio de ações coercitivas e de incentivos, mediando a efetividade dessas ações com os custos impostos aos atores, para que com o passar do tempo elas não sejam abandonadas.
Essa luta diferencia sociedades pelo grau de suas instituições na defesa desses valores. Não adianta admirar os países nórdicos, com seus avanços nas relações sociais, às vezes idealizados, sem lembrar que aquelas sociedades, em algum momento de sua trajetória, adotaram pactos para a preservação de determinados valores e assumiram as ações e os ônus decorrentes dessas decisões. E isso com luta, talvez não com espadas, mas com canetas. Hoje talvez as batalhas se deem com cliques no teclado, mas para a sua efetividade, para proteger as vidas negras, talvez a trinca institucionalista de regras, regulação e compliance necessite ser lembrada.
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*Marcus Vinicius de Azevedo Braga é Doutor em Políticas Públicas (UFRJ)
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