Claudio J. D. Sales, Eduardo Müller Monteiro e Richard Hochstetler *
A penetração exponencial da chamada “geração distribuída” nos dois últimos anos pode ser explicada por vários fatores, mas os mais importantes – e menos compreendidos – são os relacionados ao mecanismo tarifário que embute um subsídio implícito que prejudica os consumidores, mas beneficia os investidores em geração distribuída e toda a sua cadeia de fornecedores de equipamentos e serviços.
Isso explica a mobilização massiva dos chamados “capacetes amarelos” em seu lobby agressivo junto ao Congresso Nacional em Brasília. Se essa distorção tarifária não for consertada uma absurda transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos continuará a se aprofundar. De acordo com a Aneel, o subsídio a favor da geração distribuída saltará de R$ 98 milhões em 2018 para R$ 5,4 bilhões em 2023, um aumento de 5.360% em apenas 5 anos.
A definição de geração distribuída tem sido alterada ao longo dos anos na regulação brasileira. Inicialmente, este produtor era classificado como uma pequena central geradora conectada ao sistema de distribuição. Tal figura já estava presente na regulação do sistema desde o Decreto 5.163/2004, cuja inserção era possível na época apenas com a realização de Chamadas Públicas pelas distribuidoras de energia elétrica. Este mecanismo foi considerado não suficiente pela Aneel, que observou em 2010 a presença de apenas 95,9 MW médios de contratos de geração distribuída.
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Buscando incentivar esta modalidade de produção de energia, a Aneel abriu a Consulta Pública 15 de 2010, que avaliava os seguintes mecanismos para promover a geração distribuída:
- Tarifas Feed-in: Obrigação pelas distribuidoras de comprar energia de geradores distribuídos em condições pré-definidas, normalmente com tarifas mais vantajosas do que as do mercado;
- Quotas: Definição de quotas de energia a serem adquiridas pelas distribuidoras, estabelecendo o repasse destes custos aos consumidores;
- Net Metering ou Compensação de Energia: Cobrança apenas do consumo líquido (consumo bruto do consumidor abatido da geração bruta do gerador distribuído) por meio de medidores bidirecionais; e
- Certificados de Energia Renovável: Emissão de certificados para determinadas fontes, sem definir relação de obrigação de compra ou venda.
O mecanismo que acabou sendo adotado pela Aneel e expresso na Resolução Normativa 482/2012 foi a Compensação de Energia (ou Net Metering na literatura internacional). Neste sistema, a energia gerada é abatida do consumo da unidade consumidora em cada período de faturamento, resultando na cobrança pelo consumo líquido. Em resumo:
- se o total de energia gerada for maior que o total de energia consumida durante o período de faturamento, o chamado “prossumidor” (ora produtor, ora consumidor) recebe um crédito de energia para as próximas faturas; enquanto
- se o total de energia consumida for maior que o total de energia gerada durante o período de faturamento, o consumidor paga apenas a diferença entre a energia consumida e a gerada.
Após sete anos de vigência da Resolução Normativa 482/2012, e observando tanto a aceleração da penetração de geração distribuída quanto o crescimento de seus impactos tarifários, a Aneel iniciou a reavaliação da regulação desse mecanismo e seus incentivos em 2019. Como resultado, foi aberta a Audiência Pública 01/2019 (AP 01/2019). Nos cálculos da Aneel:
- o tempo de retorno de investimento em geração fotovoltaica seria de 4,7 anos; e
- a taxa de retorno seria de 23% ao ano considerando a vida útil dos equipamentos.
Diante de retorno tão rápido e elevado, a Aneel propôs na mesma AP 01/2019 a redução dos incentivos à geração distribuída por meio de um ajuste gradual da tarifa de compensação de energia para assegurar a cobertura dos demais custos de fornecimento que eram subsidiados pelos demais consumidores sem instalações de geração distribuída. A proposta da Aneel foi recebida com muita resistência pelos investidores em geração distribuída e suas cadeias de fornecedores e acabou levando o Congresso Nacional a legislar sobre o tema.
Depois de uma novela de mais de dois anos, com direito a “guerras de narrativas” e fake news como a “taxação do Sol”, a Lei 14.300 (homologada em janeiro de 2022) adotou uma posição parecida com a avaliação da Aneel, estabelecendo, após um período de transição, a necessidade da inclusão do custo do uso do sistema de distribuição porque o mecanismo de Compensação de Energia atual – que proporcionou um forte incentivo para a expansão da geração distribuída – é intrinsecamente inapropriado pois o mesmo: (a) não remunera adequadamente os custos do sistema incorridos pelo próprio prossumidor; e (b) produz subsídios cruzados regressivos, beneficiando os mais ricos e prejudicando os mais pobres.
Na prática, o mecanismo de Compensação de Energia foi exitoso na promoção da geração distribuída no Brasil, mas suas distorções alocativas apontam a necessidade de sua evolução para a real valoração da energia da energia injetada na rede e do seu uso das redes de transmissão e distribuição. Portanto, inovações são necessárias tanto na regulação e legislação setorial quanto em soluções técnicas de medição e faturamento.
Em junho de 2022, o MME abriu a Consulta Pública 129 para definir os conceitos que embasarão a valoração dos custos e benefícios da Geração Distribuída, sendo propostos que eles busquem, entre outros atributos: reprodutibilidade, flexibilidade, contestabilidade, granularidade e provisão de serviços ancilares. Em seguida a Aneel seguiu para a implementação da regulação infralegal da Lei 14.300/2022 por meio de duas consultas públicas (AP 50/2022 e AP 51/2022).
As análises detalhadas sobre o marco da geração distribuída, seus impactos tarifários e distorções alocativas estão disponíveis gratuitamente no segundo capítulo do estudo “Programa Energia Transparente – 16ª. edição”.
Uma nova estrutura tarifária precisa ser definida para que a geração distribuída passe a ser boa para todos os consumidores brasileiros, inclusive os de menor renda, e não apenas para os investidores em geração distribuída e seus fornecedores.
Afinal, o Sol nasceu para todos ou apenas para alguns?
* Claudio J. D. Sales, Eduardo Müller Monteiro e Richard Hochstetler são do Instituto Acende Brasil.
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