Airton Florentino de Barros*
Há operadoras de planos de saúde que, sob o pretexto de desequilíbrio financeiro e aumento de sinistralidade, não têm o menor pudor em fixar o reajuste anual de seus planos em índice cinco ou mais vezes maior do que o índice oficial de inflação. Trata-se de fato público e notório.
Só a omissão deliberada de agentes de órgãos de todos os Poderes do Estado, com afronta aos princípios norteadores da administração pública, como os da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (CF, art.37), pode explicar a liberdade que essas operadoras têm para a prática do mencionado abuso, fato que está a exigir, aliás, séria investigação da Polícia Federal e do Ministério Público Federal para a apuração da conduta dos reais beneficiários desse gravíssimo crime contra a economia popular, que fere mortalmente a dignidade do cidadão consumidor e pagador de tributos.
Isso porque a ordem legal não admite o reajuste superior aos índices oficiais de inflação.
De fato, o reajuste do referido contrato regula-se pela legislação instituidora do plano econômico de estabilização da moeda (Lei 8.880/94), uma das maiores e irrenunciáveis conquistas nacionais das últimas décadas, que vedou reajuste de prestações contratuais em períodos inferiores a um ano e a incidência de índices de correção monetária superiores aos oficiais (cf. tb. Lei 9.069/95, arts.27 e 28, §1º). E não se diga que a Lei 9.656/98, que dispõe sobre os planos privados de assistência à saúde, por ser posterior, teria alterado esse critério, visto que a Lei 10.192/2001, bem posterior, manteve expressamente o regramento econômico anteriormente em vigor, em defesa da manutenção do valor da moeda e consequente combate à inflação, como política de interesse de todos os seguimentos sociais.
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Ainda que não houvesse normatização legal de ordem cogente nesse sentido, o reajuste não se justificaria. É que o plano de saúde, antes de ser colocado à disposição do consumidor, passa por cálculo atuarial, que inclui estatística de risco por idade, características naturais e genéticas, ocupacionais, sinistralidade e viabilidade financeira, sob pena de não ser aprovado pela ANS (Lei 9.656/98, art.8º e 19). Não é por outra razão que tais contratos passam por protocolo naquele órgão.
Além disso, os índices oficiais de inflação, como o IPCA, já contemplam, na cesta de produtos e serviços considerada, os preços da saúde, de modo que qualquer reajuste acima dos índices oficiais de inflação, assim, configura “bis in idem”.
É necessário considerar, de outro lado, que reajustes superiores aos índices oficiais de inflação, no caso, podem caracterizar expediente artificial a disfarçar, na apuração do índice de reajuste, efeitos financeiros equivalentes aos de reajuste de periodicidade inferior à anual, vedado legalmente (Lei 10.192/2001, art.1º, §§ 1º e 3º).
A propósito, qualquer reajuste superior aos índices oficiais de inflação, ainda que sob a conveniente denominação de reajuste por aumento de sinistralidade, configuraria clara burla ao Estatuto do Idoso, que impede o reajuste de prestações contratuais dessa natureza ao consumidor que tenha alcançado, como no caso do autor, mais de 60 anos de idade.
Ademais, o reajuste acima da inflação oficial caracteriza especulação mercantil, incompatível com o objeto o contrato de plano de saúde.
Não se pode tratar a saúde, pública ou individual, como se se cuidasse de direito comum, privado, patrimonial, disponível. A saúde é atributo indispensável da vida humana e esta é direito fundamental e indisponível. Nem é preciso que se refira à vida de toda a coletividade. A manutenção de uma única vida humana, a preservação da saúde de um cidadão apenas já se caracteriza como de interesse geral. Não fosse assim, nem seria legítima a ação penal pública para o crime contra a vida de uma única pessoa.
É lamentável que a completa ausência do Estado, caracterizada pela privatização de fato de atividades essenciais do Poder Público e pela absoluta inoperância das agências reguladoras, obrigue o cidadão, pagador de impostos, a tornar-se refém de empresas operadoras de planos privados de assistência à saúde.
Note-se que a saúde, a ser prestada pelo regime universal, é dever do Estado (CF, art.5º, 6º, 196). Nada impede, é verdade, que esse serviço seja prestado por convênios, em regime complementar ou suplementar (CF, art.199). Todavia, se uma empresa resolve atuar no campo da saúde, não pode agir como um banqueiro, mero captador de poupança popular, com exclusivo interesse no lucro, nem como um mercador de fantasias, sem qualquer compromisso com o consumidor, mas como quem presta um serviço de natureza pública fundamental, com toda a responsabilidade decorrente, inconciliável com o interesse exclusivo na especulação mercantil ou no lucro exorbitante.
Não é por outra razão que as operadoras de assistência à saúde são proibidas pela lei de realizarem operações financeiras com pessoas e empresas a ela vinculadas (Lei 9.656/98, art.21).
É verdade, sim, que as operadoras de planos de saúde atuam no campo da saúde suplementar, mas isso não lhes retira o dever de cumprir os princípios éticos que são e devem ser observados pelas entidades privadas que prestam serviços de saúde complementar (Lei 8.080/90, art.22).
De outra parte, dada a vantagem da economia de escala, o reajuste do plano de saúde coletivo deve obrigatoriamente ser menor do que o do plano individual.
Por se cuidar de contrato de serviço de saúde e, portanto, de finalidade social, o reajuste das prestações sujeita-se a rigoroso controle e, por isso mesmo, deve constar de minuta de cláusula contratual aprovada pela ANS, proibindo a lei a variação do valor até mesmo para a renovação de contrato temporário (Lei 9.656/98, art.13).
Não se diga que os planos coletivos de saúde não se sujeitam a esse controle, por força do disposto no art.35-E, §2º, da Lei 9.656/98. O mesmo controle assegurado aos contratos de planos individuais e familiares também se aplica aos contratos de planos coletivos.
De fato, para os planos individuais, estabelece a lei que a aplicação de cláusula de reajuste das contraprestações pecuniárias dependerá de prévia aprovação da ANS (Lei 9.656/98, art.35-E, §2º). Não se pode esquecer, todavia, que a cláusula relativa aos critérios de reajuste das contraprestações pecuniárias, tanto do plano individual como do coletivo, deve constar do contrato padrão (art.16, XI), sujeito à fiscalização e controle da ANS (arts.1º, §1º, 20, §1º).
Além disso, quem quer que tenha acompanhado o processo legislativo a respeito, desde os Projetos de Lei do Senado (nº93/93) e da Câmara (nº4425/94), sabe que a exclusão do plano de saúde coletivo do preceituado no artigo 35-E, §2º, da Lei 9.656, não tinha por finalidade estabelecer um salve-se quem puder na contratação ou dar à operadora o odioso privilégio de definir o índice de reajustamento que quisesse.
É princípio do Direito a prevalência do interesse coletivo sobre o individual.
Também em relação aos contratos de plano de saúde, o intuito do legislador sempre foi o de oferecer maiores vantagens ao coletivo do que ao individual. E na hipótese nem poderia ocorrer o contrário. Seria odioso que o Legislador quisesse dar maiores vantagens ao indivíduo do que à coletividade.
Não tem o menor cabimento, pois, a política de seguro saúde ou a política de proteção ao consumidor garantir menor índice de reajuste para os contratos individuais do que os impostos aos contratos coletivos. Ademais, era de se presumir que alguém que representasse uma coletividade considerável tivesse maiores chances de obter vantagens que ao contrato individual não se concede. É que, nas regras de mercado, o plano de saúde coletivo é naturalmente mais vantajoso para a operadora, pela redução dos custos de administração, de produção, prestação de serviços, cadastramento, além da maior certeza de pontual arrecadação, sem contar a possibilidade de maiores lucros com a captação e consequente capitalização de vultosos recursos coletivos. É o que se chama na linguagem mercantil de economia de escala.
São esses os princípios que permitem ao atacadista vender por preço muito menor do que o da mesma mercadoria vendida no varejo.
Em outros termos, o que se previa e o que se pretendia prever era que os contratantes de planos coletivos de assistência à saúde, pela força da união de inúmeros segurados que representam, de uma só vez, tivessem espontâneo cacife para negociar melhores preços e índices de reajuste do que os conquistados pelos planos individuais.
Por esse motivo, e só por esse motivo, é que se evitou vincular o reajuste do plano de saúde coletivo a prévias autorizações.
Pelo que se anotou nos itens anteriores, visivelmente ilegítimo até mesmo o índice aprovado pela ANS para os planos individuais e familiares, sempre superior ao índice oficial de inflação. Todavia, se se admitisse como legítima a fixação de índice superior ao oficial da inflação do período, jamais poderia ultrapassar o aprovado pela ANS que, aliás, já considera estatística de sinistralidade e de incorporação de novas técnicas médicas.
É necessário, pois, que a corrupção que alimenta esse nocivo sistema de reajustes de planos de saúde acima da inflação oficial seja severamente combatida.
*Airton Florentino de Barros, é advogado e professor de Direito Empresarial, fundador e ex-presidente do MPDemocrático
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