Camila Saldanha Martins e Juliana Bertholdi*
Na última semana, ganhou notoriedade na mídia a concessão de liminar parcial proferida pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli. Ao analisar a Arguição de Descumprimento Fundamental (ADPF) nº. 799 proposta pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), entendeu o Ministro que a tese defensiva de “legítima defesa da honra” é inconstitucional, pois viola princípios da dignidade da pessoa humana, de proteção à vida e também de igualdade de gênero.
Segundo a ação proposta, a matéria envolve relevante controvérsia constitucional, tendo em vista que existem inúmeras decisões de Tribunais de Justiça que ora reconhecem como legítima e ora invalidam vereditos em que réus são absolvidos da prática de feminicídio com base nessa tese. Foram apontadas pelo Partido, ainda, divergências na compreensão pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça.
Embora não esteja prevista na legislação penal, essa tese ainda é muito utilizada como técnica de absolvição pelos advogados no Plenário do Tribunal do Júri, sob o argumento de que o réu (normalmente o marido ou namorado) cometeu o crime de homicídio, previsto no art. 121 do Código Penal, para “proteger” sua honra; diante de eventual ciúme ou traição da vítima mulher (normalmente a esposa ou a namorada).
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O uso dessa tese ficou famoso na jurisprudência brasileira após o caso envolvendo a morte da socialite carioca Ângela Diniz, executada no ano de 1976 pelo então companheiro, Raul Fernando do Amaral Street, conhecido como Doca Street, na praia dos ossos, na cidade de Búzios, Estado do Rio de Janeiro. Naquela ocasião, o crime chegou a ser compreendido como “passional” e o réu defendido pela sociedade da época, pois Ângela era conhecida por ser uma mulher “livre e libertina”.
No primeiro julgamento realizado, o réu chegou a ser condenado a uma pena ínfima, justamente em razão do uso da premissa da “legítima defesa da honra”: 02 (dois) anos de pena, com direito à suspensão. Somente após recurso do Ministério Público sob o argumento de que os jurados teriam julgado contrariamente à prova dos autos é que Doca foi condenado a uma pena de 15 (quinze) anos de reclusão. O caso foi relembrado no podcast “Praia dos ossos”, da rádio novelo.
PublicidadeApós a repercussão do caso, a tese passou a ser utilizada de forma mais expressiva nos Tribunais do Júri Brasil a fora. Por isso, em sua decisão proferida em 26.02, o ministro dá interpretação conforme à Constituição e aos dispositivos do Código Penal e Código de Processo Penal, de modo a excluir a interpretação a favor da legítima defesa da honra da excludente do artigo 25 do Código Penal, a legítima defesa, pois não possui qualquer guarida do ordenamento jurídico brasileiro e acaba por deslegitimar um argumento legal e em consonância com a legislação penal.
Ainda, segundo o ministro, o uso desse tipo de argumento para defender-se de adultério não só não pode ser compreendido como legítima defesa de direito, mas ainda é capaz de configurar uma agravante do crime, porque ataca sua companheira de forma covarde e criminosa. Assim, esse argumento é odioso, desumano e cruel, imputando às próprias vítimas a “culpa” por sua morte, contribuindo imensamente para a naturalização e perpetuação da violência contra a mulher no Brasil.
A discussão, ainda que bem vinda, tendo em conta o notório machismo estrutural que permeia nosso Judiciário, toca em pontos sensíveis da prática processual para tentar desfazer um mal social. Explica-se: também com bases constitucionais, o Direito à Plenitude de Defesa confere ao Advogado que realiza a sua sustentação oral perante o Tribunal do Júri a utilização de todos os meios argumentativos possíveis, incluindo-se argumentações morais, éticas, religiosas. Isto porque, ao contrário do Juiz togado, o jurado do Tribunal do Júri possui liberdade para julgar de acordo com a sua íntima convicção, sem precisar fundamentar juridicamente sua decisão.
É com esta base que surgem argumentações que permitem, por exemplo, as absolvições por clemência em delitos de homicídios como os de Maria*, que obrigada a casar-se com seu abusador após engravidar aos 14 anos de idade, descobre que os mesmos abusos estão sendo cometidos contra a filha em comum Eduarda, de apenas 11 anos. Maria então comete homicídio em face de seu algoz. Seu perdão perante os jurados não é outro senão de base moral: ininteligível juridicamente, mas compreensível pelo ser humano do outro lado, que decide absolvê-la. Seguramente pode-se construir um sem-fim de argumentos retóricos pela inconstitucionalidade do caso narrado: se está diante de uma conduta típica, jurídica e culpável, escusada tão somente com base na empatia.
Assim são as defesas por vezes realizadas no Plenário do Tribunal do Júri: calcadas em argumentos morais ou éticos, sem fundamentações jurídicas propriamente ditas. Difícil avaliar se a decisão liminar conferida no âmbito do STF funciona como proteção às mulheres vítimas de feminicídio – muitas vezes duplamente vitimizadas em Plenário – ou como ataque à liberdade do exercício de Defesa. Argumentar a inconstitucionalidade de uma Defesa (i)moral adentra espaços argumentativos pantanosos.
Fato é que o maior problema da tese de legítima Defesa da honra em um Tribunal autorizado constitucionalmente a julgar por sua íntima convicção não é o uso da tese pela Defesa em si, mas os constructos sociais que ainda fazem de tal tese um argumento bem recebido pelo corpo de jurados. Chamem-nas de como quiserem, as teses patriarcais sempre terão espaço em uma sociedade patriarcal; não é um proibitivo isolado que modificará tal realidade.
Na prática, a decisão liminar impede que os advogados sustentem, direta ou indiretamente, a legítima defesa da honra ou qualquer argumento que induza à tese em questão, seja na fase de investigação ou nas fases de sumário de culpa e julgamento perante o júri, sob pena de nulidade do ato; até que ela seja submetida a referendo do Plenário do Tribunal, o que acontece hoje.
*Nome fictício.
Camila Saldanha Martins é professora de Direito Penal e Processo Penal. Mestre em Direito pelo Centro Universitário Internacional (UNINTER). Especialista em Direito Penal e Processo Penal pelo Centro Universitário Opet (UNIOPET). Especialista em Direito Penal econômico pelo Instituto de Direito Penal Econômico Europeu (IDPEE) e Faculdade de Direito de Coimbra – Portugal. Advogada criminalista.
Juliana Bertholdi é professora de Direito Penal e Processo Penal (UniOpet e Uninter). Mestranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Especialista em Direito Público (UniBrasil). Especialista em Direito Eleitoral (IDDE). Advogada criminalista.
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