Chico Whitaker *
Foi lançada no ano passado uma nova campanha da sociedade civil visando enfrentar uma importante distorção das práticas eleitorais do Brasil: nós nos centramos nas campanhas eleitorais para os Executivos (prefeituras, governos dos estados e Presidência da República) enquanto as eleições para o Legislativo (câmaras municipais, assembleias legislativas estaduais e Congresso Nacional) se realizam paralela e independentemente, sem nossa maior atenção. E estamos tão acostumados com essa dicotomia entre as duas campanhas que os eleitores tendem a deixar para a última hora a escolha de um candidato em quem votar para o Legislativo, por considerarem essa escolha de menor importância.
Mas, em um Estado Democrático de Direito, se todos os cidadãos, cidadãs e empresas só podem fazer o que a Lei autorize, isso se passa também com os Chefes do Executivo: só podem fazer o que for autorizado por Lei. E quem faz a Lei é o Legislativo. Assim, contrariamente à propaganda dos candidatos ao Executivo, que se apresentam como se pudessem realizar tudo que prometem, quem tem o poder decisivo, num governo, é o Legislativo. E como o Legislativo decide por maioria de votos, é sua maioria que tem esse poder. O que significa que o Executivo depende dessa maioria para poder agir. E precisa, portanto, que seja eleita, junto com ele, uma maioria que o autorize a agir e não uma maioria que bloqueie sua ação (sendo que ele até pode ser destituído se uma maioria de 2/3 dos membros do Legislativo considerar que ele desrespeitou a Lei – quem não se lembra do impeachment da Dilma?).
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Um exemplo claro dessa relação entre os dois Poderes ocorre com a lei orçamentaria, votada pelo Legislativo ao final de cada ano. O chefe do Executivo é quem tem a chave do cofre que dá acesso aos recursos públicos, de que depende sua ação. Mas, para abrir o cofre e usar esses recursos, ele tem que dispor do segredo dessa chave. E quem lhe dá esse segredo é a maioria do Poder Legislativo, na lei orçamentária que aprovar, a partir de projeto de lei orçamentaria que Executivo lhe enviou. Mais ainda, ao elaborar seu projeto de lei orçamentaria, o Executivo tem que respeitar a Lei de Diretrizes Orçamentárias, aprovada previamente também pelo Legislativo.
Isso é o que explica as atuais dificuldades do Executivo federal para realizar suas promessas de campanha. Ao não contar com uma maioria que o sustente no Poder Legislativo, ele se vê obrigado a adotar a prática do toma-lá-dá-cá da política tradicional – ou um “é dando que se recebe” menos santo que o da conhecida máxima religiosa, interpretada de forma infeliz por um deputado federal ao final da Constituinte. E é essa a experiência vivida, nos vários níveis de governo, por muitos Chefes do Executivo “a favor do povo” que tiveram que “negociar”, com ou sem sucesso, com Legislativos com maioria “contra o povo”.
Esta distorção se deve, na verdade, a um conhecimento insuficiente, por parte dos eleitores, de candidatos e até de dirigentes partidários, do poder do Legislativo no Estado Democrático de Direito. Mas não é a única, no processo eleitoral de nossa democracia, entre todas que precisariam ser superadas para que ela merecesse esse nome. Uma das mais antigas, mais conhecidas e mais persistentes é a da compra de votos de eleitores, que desvirtua a representatividade de nossos parlamentos. Ela foi “naturalizada” pelos mais “espertos” da classe política, para os quais as carências dos mais pobres se tornaram “funcionais”. A distribuição de cestas básicas – ou até de dentaduras… – entrou no cardápio das campanhas.
PublicidadeO Código Eleitoral há muito tempo tratava essa distorção como crime. Mas diante da passividade dos Poderes para coibi-lo – quantos de seus membros dele se beneficiam? – a sociedade civil reuniu um milhão de assinaturas para levar em 1999, ao Congresso nacional, uma Iniciativa Popular de Lei que enfim o punisse, dez anos depois da criação desse instrumento pela Constituição. A Lei 9.840/99, que dela resultou, levou a resultados significativos, ao determinar a perda do registro dos candidatos que comprassem ou tentassem comprar votos de eleitores.
Mas muito tempo passou e esse crime se “naturalizou” de novo, até com o agradecimento dos que pensam que assim conseguirão, a cada quatro anos, alguma compensação por tanta promessa mentirosa que lhes é feita. Mas embora a denúncia da compra de votos possa diminuir bastante o número de “espertalhões” entre os eleitos, hoje em dia os partidos progressistas, seus eleitores e candidatos constatam compras de votos, mas quase nunca as denunciam – até por já nem saberem como o fazer.
Outra distorção, criada pela regra dos quocientes eleitorais, permanece intocada pela ação dos mesmos interesses, e abre espaço para os “puxadores de votos”. Estes usam sua notoriedade – no esporte, na mídia ou, atualmente, no mundo dos “influenciadores” digitais – para carregar consigo, para dentro dos parlamentos, pessoas com pouquíssimos votos e representatividade nula. Eles próprios nem sempre sabem exatamente quais são suas funções de representação, e por vezes até desconhecem o papel da atividade política.
Uma distorção surgida mais recentemente, de mais difícil enfrentamento por sua natureza técnica e pelo poder econômico dos que dela se beneficiam, é a possibilidade de direcionamento massivo de mensagens falsas pela internet, diretamente a eleitores desavisados devidamente identificados. Esta tecnologia, criada por cientistas mal-intencionados, se apoia na novidade das redes sociais digitais e em outro tipo de carência: a de formação política e de informação de um número expressivo de eleitores, especialmente em países como o nosso, marcado pela desigualdade social. Nesse caso, é a própria passividade dos assim manipulados, por desconhecimento do processo que os está vitimando, que protege quem usa essa tecnologia para ser eleito.
É nesse quadro de perversidades diversas – com seus efeitos daninhos se somando ao longo dos quatro anos dos mandatos assim obtidos – que a nova campanha nos faz recuperamos um pouco de esperança.
O título desta campanha é o mesmo deste artigo: “Rumo à formação de maiorias a favor do povo nas Câmaras Municipais”. Ela foi lançada por uma nova organização da sociedade civil – a Universidade Mútua, vinculada à plataforma digital ocandeeiro.org (ocandeeiro.org/unimutua). Apoiada na pedagogia de Paulo Freire – todos tem alguma coisa a aprender e todos tem alguma coisa a ensinar – esta Universidade estimula a formação de “Rodas de Conversa” autônomas, virtuais ou presenciais, para trocas de saberes sobre temas de interesse dos seus associados, com objetivos de conhecimento ou de ação. E lhes oferece, para isso, gratuitamente, salas de reunião virtual. E foi uma dessas Rodas de Conversa (“Sobre o Poder do Legislativo e as eleições de 2024”) que propôs e desenvolve a campanha.
Ela foi iniciada com uma carta aberta aos dirigentes dos partidos progressistas, a respeito dos princípios do Estado Democrático de Direito acima referidos, apoiada por sete juristas do direito eleitoral (Alfredo Attié, Antonio Funari Filho, Luciano Santos, Marco Aurélio de Carvalho, Marilu Bierrenbach, Marlon Reis e Pedro Serrano). E se pretende desenvolvê-la até as eleições de 2026, associada ao Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), que já elaborou uma proposta de Iniciativa Popular de Lei visando mudar, de forma criativa, o sistema de votação para o Legislativo, em todos os níveis (O MCCE nasceu com a Iniciativa Popular de Lei Contra a Compra de Votos, em 1999, e se consolidou encaminhando ao Congresso a Iniciativa Popular da Lei da Ficha Limpa, em 2010, com um milhão e meio de assinaturas, que atacou outro problema eleitoral: determinou que criminosos condenados em segunda instancia, por um colégio de juízes, se tornam inelegíveis por oito anos).
A campanha se desenvolve atualmente através da divulgação, nas redes sociais, de vídeos e cards, com “recados” a eleitores e candidatos sobre a importância e a oportunidade de se começar a superar a dicotomia das práticas eleitorais. E também com a realização de lives semanais (às 20 horas, nas 2as ou nas 4as, pelo link http://ocandeeiro.org/aovivo) com candidatos e candidatas a Prefeito e Prefeita e à vereança de diferentes cidades, assim como com dirigentes de diferentes partidos progressistas. Foram realizadas até 11 de março 10 lives desse tipo. Suas gravações, assim como os cards e vídeos, ficam à disposição dos interessados em divulga-los em ocandeeiro.org/eleicoes2024.
Vale a pena dizer que as lives realizadas já permitiram que se começasse a encontrar um modo de fazer campanhas combinadas para o Executivo e para o Legislativo: desenvolvendo todas elas em torno de um mesmo programa de governo, e não unicamente em torno das qualidades pessoais de cada um e de sua relação com determinados setores sociais, territórios e lutas. Ou seja, o candidato à chefia do Executivo se compromete a realizar um programa de governo, e os candidatos ao Legislativo, do partido ou partidos que os apresentam, se comprometem a lhe dar as necessárias autorizações legais. E se observou também que, para ser melhor compreendido e mais apoiado, tal programa de governo deveria ser elaborado com participação popular; devendo também participar dessa elaboração os candidatos ao Legislativo, o que seguramente ajudaria a formar maiorias “a favor do povo”, nas Câmaras Municipais.
Seria talvez útil completar estas informações com a constatação, feita nas reuniões da Roda de Conversa que desenvolve a campanha, de que a dicotomia das campanhas eleitorais é o que faz inchar nos Legislativos – ao se deixar que cada candidato faça a sua como quiser – as maiorias de oportunistas e espertalhões “contra o povo”.
Na verdade, dentro de um país que se move dentro de uma lógica e de uma cultura capitalistas, nossas vidas tendem a se reduzir a uma luta por dinheiro – competitiva, individual e permanente – para muitíssimos, em nosso país, para simplesmente sobreviver, ou por mais comodidade, prazer, poder ou glória para diversos tipos de minorias. Os mais espertos percebem então que a política – ainda que vista por muitos como uma atividade de serviço à sociedade ou para nela impor ou fazer prevalecer suas ideias – é também a melhor atividade para ganhar dinheiro, porque se desenvolve em torno do enorme cofre dos recursos públicos. E descobrem que, dentro dessa atividade, o melhor lugar é o Legislativo, porque nele não se tem os riscos e ônus do Executivo e se pode chantagear, com o poder do voto de cada um, quem tenha a chave do cofre. Além disso, eles percebem que as campanhas eleitorais tem custos elevados, mas se pode também buscar pessoas e empresas que as financiem em troca dos seus serviços de legislador, na defesa dos interesses dos financiadores, o que pode proporcionar outros ganhos.
Ora, como um número significativo deles consegue assim entrar na “classe política”, tudo isso acaba por dar razão aos detratores dos parlamentos que os chamam de “balcões de negócios”. E por isso é comum se ouvir, em cidades do interior, um comentário maldoso sobre seus vereadores e suas vereadoras: entraram pobres e saíram ricos. Com os mais bem sucedidos continuando suas “carreiras” como candidatos a deputados estaduais, federais e senadores – cujas campanhas serão ainda mais caras…
Realisticamente, no entanto, não será fácil fazer com que esta campanha penetre efetivamente em práticas políticas consolidadas há muitos anos, com tantos interesses sendo satisfeitos por essas práticas. Isso só ocorrerá se um número muito grande de pessoas nela se empenharem, Brasil afora, criando uma onda de renovação. Mas se mantivermos a prática eleitoral habitual, estaremos criando condições de fracasso para os Chefes do Executivo, vereadores e vereadoras “a favor do povo” que elegermos.
Por isso a UniMutua está convidando todos que considerem necessário superar a distorção indicada nesta campanha a formarem Rodas de Conversa presenciais sobre as questões que ela levanta, ao longo deste ano até outubro, nas cidades em que existam cidadãos, cidadãs e candidatos e candidatas à Prefeitura e à Câmara dispostos a enfrentar o desafio. Ela lhes oferecerá, se necessário, salas virtuais para suas reuniões, e divulgação das mesmas.
Ao mesmo tempo, ela pode realizar lives com os candidatos a Prefeito ou Prefeita e à vereança nas diferentes cidades, em todo o país, com posterior divulgação no ocandeeiro.org/eleicões2024, para discutir como realizar campanhas combinadas para o Executivo e para o Legislativo, e como elaborar, com participação popular, planos de governo a favor do povo.
Para informar a Unimutua sobre Rodas formadas e candidatos interessados, contatá-la pelo endereço https://ocandeeiro.org/fale-conosco/. Esse mesmo endereço pode ser usado por quem tiver tido a paciência de ler este artigo e quiser dialogar, sobre as questões nele levantadas, com os participantes da Roda de Conversa da Universidade Mutua sobre o Poder do Legislativo.
*Chico Whitaker é consultor da Comissão Brasileira Justiça e Paz, recebeu em 2006 o prêmio Right Livelihood Award, também conhecido como Premio Nobel Alternativo por sua atuação em favor dos direitos humanos e da sustentabilidade.
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