Começo com uma história. História com “h”. Estória (com “e”), numa acepção mais tradicional, retrata fatos lendários ou ficcionais.
No início do ano de 2021 comprei passagens aéreas de Brasília para Maceió (ida e volta) a serem utilizadas no mês de março do mesmo ano. Com o recrudescimento da pandemia da covid-19, a viagem foi adiada, a companhia aérea avisada e os bilhetes ficaram em aberto para uso, sem multa, no prazo de 12 meses.
Na penúltima semana, entrei em contato telefônico com a empresa, depois de tentar, sem sucesso, marcar a nova viagem pelas vias eletrônicas (internet). A verdadeira via crucis para chegar à marcação do novo deslocamento envolveu, entre outros, os seguintes episódios:
a) algumas ligações telefônicas (três horas de duração, no total);
b) queda das ligações durante os atendimentos;
c) alguma atividade adivinhatória para domar os menus apresentados no início das ligações;
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d) aceitação e, logo depois, recusa de operações com o mesmo cartão de crédito e
e) necessidade de pagar “diferenças” (com grandes variações de um dia para o outro) para utilização de passagens com valores menores que os anteriores já pagos.
Esse relato, não creio que seja isolado, parece afrontar o mito corrente de que é eficiente um serviço quando prestado pelo setor privado (empresas privadas). Existe, é importante frisar, um outro mito correlato. Justamente aquele que indica a ineficiência de um serviço quando prestado pelo Poder Público (Estado). Por trás desses mitos (ou da tese que os sustenta), propositalmente escondida, está a mais relevante questão da sociedade brasileira: a extrema desigualdade socioeconômica (patrocinada por elites dirigentes animadas pelo obscurantismo e pelo atraso civilizatório).
Mas será mesmo que a gestão privada determina a eficiência e a gestão pública impõe a ineficiência? Acredito que o problema da qualidade administrativa ou de gestão envolve aspectos muito mais profundos do que a falsa dicotomia público versus privado.
Nessa linha, o UOL divulgou a seguinte notícia: “Privatizar é ideal? 884 serviços caros e ruins foram reestatizados no mundo”. Em resumo, o texto apresentado pelo UOL indica que:
a) “reestatizações aconteceram em serviços essenciais como saneamento, energia e coleta de lixo”;
b) “segundo o instituto [Transnational Institute], as empresas privadas priorizam lucro, aumentam preços e prestam serviços ruins”;
c) “ao menos 55 países tiveram algum processo de reestatização entre 2000 e 2017” e
d) “países centrais do capitalismo, como Alemanha, França e EUA lideram a lista”.
Com efeito, a eficiência ou qualidade envolvida na prestação de um serviço (público ou privado) resulta do desenvolvimento de técnicas estudadas e indicadas pela Ciência da Administração, uma das mais importantes áreas do conhecimento humano. As funções administrativas, abordadas nas várias teorias sobre gestão, compreendem: planejar, organizar, dirigir e controlar (nessa linha, o famoso Decreto-Lei n. 200, de 1967).
Entre os elementos necessários para a realização das referidas funções, afastados fatores externos, estão: recursos financeiros suficientes, recursos humanos qualificados e meios logísticos adequados.
Assim, o comprometimento de metas, objetivos, eficiência, efetividade ou qualidade decorre, no espaço público ou privado, de insuficiências ou desvios na formatação das funções administrativas ou mobilização dos elementos necessários. Não se vislumbra a existência de um entrave intrínseco ou apriorístico para a construção de soluções administrativas ótimas no âmbito do Poder Público ou do Setor Privado.
A realidade brasileira do fornecimento de bens, serviços e utilidades parece confirmar a ponderação mencionada. São inúmeros os casos de atividades com nível de excelência nas áreas públicas e privadas. Eis alguns exemplos para ilustrar a afirmação: o Butantan e a Fiocruz são cantadas em verso e prosa, sobretudo em tempos de pandemia; e a tecnologia bancária brasileira é referência mundial.
Também são numerosas as atividades, públicas e privadas, com baixíssimos níveis de qualidade. Para exemplificar: a saúde pública no Brasil, de forma geral, apresenta profundas deficiências; e as operadoras de telefonia celular (privatizadas) lideram os rankings de reclamações dos consumidores.
Inegavelmente, na área pública estão presentes enormes carências na prestação de centenas de serviços. As razões para tanto não estão localizadas num defeito natural ou nato no trato da coisa pública. A lista de motivos é consideravelmente longa.
Eis alguns dos principais: a) a pobreza e marginalização de amplos setores da população (conforme a Fundação Getúlio Vargas, o número de pobres brasileiros cresceu de 9,5 milhões em agosto de 2020 para mais de 27 milhões em fevereiro de 2021); b) o baixo nível de educação da média da população; c) a baixa formação cidadã, inclusive para a política; d) a altíssima demanda por serviços públicos; e) a necessidade de formação de uma robusta rede de proteção social e f) a existência de uma considerável gama de mecanismos voltados para o enriquecimento de grupos reduzidos da população (sonegação, subsídios, benefícios fiscais, serviço da dívida pública, formação de reservas monetárias internacionais, operações compromissadas, etc).
Perceba-se que elas não são caracterizadas por defeitos graves na realização das funções administrativas ou na mobilização dos elementos imprescindíveis antes mencionados. Trata-se de um contexto socioeconômico complexo onde imperam demandas e privilégios de várias ordens.
Também é inegável que certas realidades da Administração Pública no Brasil afetam profundamente a eficiência de boa parte dos serviços públicos. Creio que os principais fatores negativos envolvem: a) a captura do espaço público por fortes interesses privados; b) esses interesses buscam a realização de vantagens políticas e a acumulação de riquezas nas mãos de particulares; c) os níveis sistêmicos de corrupção, inclusive por intermédio da ocupação politiqueira de cargos comissionados; d) os níveis profundamente deficientes de profissionalização; e) as deficiências financeiro-orçamentárias seletivas (a exemplo do “teto de gastos” para as despesas sociais); f) o planejamento de baixo nível ou inexistente, sobretudo alheio às evidências científicas mais relevantes (diagnósticos), refratário às metas e não articulado com o plano orçamentário e g) o controle majoritariamente formal e protocolar.
Vejamos três situações emblemáticas: a) uma das primeiras vítimas da contenção de despesas, com cortes orçamentários para atender interesses de grupos políticos reconhecidamente afeitos ao fisiologismo mais rasteiro, foi a realização do censo populacional, a primeira e mais elementar base para formulação de políticas públicas em praticamente todas as áreas; b) outro exemplo significativo reside na impossibilidade prática de construir uma consistente política pública de vacinações contra a covid-19 com base em palpites e sandices (“hoje em dia, pelo menos metade da população diz que não quer tomar essa vacina”; “eu não vou tomar a vacina. E ponto final”; “mas a pressa para a vacina não se justifica” e “é impressionante como só fala em vacina”) e c) a sensibilidade social governamental, com a formulação de políticas públicas decorrentes, atende escancaradamente as pressões da agenda eleitoral.
Disse o Ministro da Economia recentemente: “nós jogamos na defesa nos primeiros três anos, controlando despesas. Agora vem a eleição? Nós vamos para o ataque (…) vai ter uma porção de coisa boa para vocês baterem palma”.
Dois aspectos, entre outros, merecem atenção na atual proposta de Reforma Administrativa no Poder Público (PEC n. 32/2020). Primeiro, pretende-se a eliminação dos limites atuais para ocupação de cargos comissionados e funções de confiança. Com a proposta permite-se a ocupação, sem restrições, desses postos, com nova nomenclatura, por pessoas sem vínculos funcionais permanentes com a Administração Pública. Segundo, busca-se a definição da possibilidade de substituição parcial ou total dos servidores de carreira por “servidores” admitidos por meio de contratações precárias e com forte influência política. Parece fora de dúvida que o enfraquecimento ou afastamento da profissionalização da Administração Pública, a partir de seus mais caros institutos perenes (concurso público, carreiras, etc), atende a interesses politiqueiros e privados em detrimento da prestação eficiente dos serviços públicos.
Em verdade, os problemas de gestão transcendem, como dito, a dicotomia espaço público versus espaço privado. A questão é bem mais profunda no Brasil. Sem adequação estrutural da forma de fazer política (pelo político eleito e pelo cidadão), das práticas educacionais em todos os níveis e da formação técnico-científica voltada para o mundo do trabalho em constante evolução prevalecerão, em todas as áreas, consideradas as peculiaridades de cada uma, enormes déficits de eficiência e qualidade nos resultados oferecidos pela gestão administrativa.
O choque de administração (que não é essencialmente normativo), construtivo, e não destrutivo, como se pretende nas reiteradas propostas de Reforma Administrativa (no Poder Público), é uma imperiosa necessidade do Brasil (e não só da Administração Pública).
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