Leice Maria Garcia* e Marcus Vinicius de Azevedo Braga**
Caro leitor, nosso título não é uma homenagem ao latim e muito menos símbolo de qualquer presunção linguística. Apenas vamos partir da inspiração da pergunta “Quis custodiet ipsos custodes?” (Quem vigia os guardiões?), das sátiras do poeta romano Juvenal, para pensar dois dilemas atuais que cercam o tema do controle da administração pública no Brasil, nos nossos dias. O dilema da percepção de não efetividade das agências de controle e o da dificuldade de se controlar os controladores.
A frase do poeta evidencia que violência e abusos nas relações de poder nos antigos regimes não eram desprezíveis. A história mostra que até mesmo soberanos foram mortos pelos próprios guardiões e, não raro, o mandante do crime subia ao trono. O que mudou de lá para cá? Muita coisa! Max Weber (1864-1920), sociólogo alemão, que viveu no início do século XX, nos ensina que, no século XVI, com o surgimento da idade moderna, o Estado soberano assumiu o monopólio do uso da força física, exercido a partir da legitimidade da estrutura racional-legal representada pelos sistemas jurídicos.
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Pierre Bourdieu, sociólogo francês, nos ajuda a enxergar porque acreditamos em certas coisas ou ainda, por que fazemos as coisas de um determinado jeito. Ele afirma que a submissão dos governados e a manutenção da ordem decorrente da dominação do Estado não são gratuitas. Elas dependem da crença dos dominados de que aqueles que agem em nome do Estado também se submetem à mesma racionalidade normativa, e que suas ações são voltadas ao bem comum. Perdida essa crença, toda a estrutura do Estado entra em crise e surge o risco de esfacelamento da sociedade (Bourdieu, 1996, 2010).
Então, fica fácil entender porque à medida que foi evoluindo o modelo de Estado moderno, até alcançar o paradigma do atual Estado Democrático de Direito, também foram sendo incorporadas novas estruturas de controle, cada vez mais complexas, como fonte não só de eficiência, mas também de legitimidade.
Atualmente, nas democracias contemporâneas, essas estruturas aparecem, especialmente, na forma de: 1) freios e contrapesos representados por poderes autônomos e independentes; 2) agências burocráticas de auxílio ao controle político do parlamento sobre a burocracia pública; 3) mecanismos burocráticos de controle interno, suporte da coordenação administrativa; 4) mecanismos de transparência e de accountability para ampliar a confiança da sociedade civil; 5) fomento à formação de uma sociedade civil participativa e fiscalizadora; e 6) autoridade suprema do Poder Judiciário para apreciar qualquer lesão ou ameaça a direitos.
É preciso alertar que, além de servirem como instrumentos de coerção e de coordenação instrumental, essas estruturas são essenciais à manutenção da representação simbólica de que o Estado merece a legitimidade que ele afirma possuir. Nesse sentido, é interessante pensar na provocação de Bourdieu (1991), quando diz que “os juristas, os guardiões da hipocrisia coletiva”. Com essa frase, o autor não está dizendo que somos todos hipócritas e que o poder judiciário nada representa. Está na realidade nos chamando a atenção para o fato de que o Estado é uma construção social, em que o principal artífice é a confiança no modelo.
Essa construção social confere ao Estado de Direito e a todos que agem em seu nome uma força extraordinária. Eles assumem a legitimidade de agir em nome de todos e, oficialmente, no interesse de todos, produzindo efeitos sociais absolutamente reais.
Porém, no mundo prático, mesmo sem grandes elaborações sobre qualquer um dos tipos de controle citados, temos evidências de que a maioria dos países está muito distante da eficácia no controle das ações dos agentes que agem em nome do Estado, o que tem afetado a confiança de governados em instituições públicas (ANECHIARICO et JACOBS, 1996; CASTELLS, 2018).
No Brasil, essa falta de eficácia nos aparece, por exemplo, nos prosaicos resultados do setor público ou nos frequentes escândalos de corrupção. Não raro, a realidade também mostra que há riscos consideráveis de excessos ou particularismos dos próprios controladores, tal como sinalizam situações recentes de combate a corrupção, como alguns aspectos controversos da Operação Lava-Jato, apenas para citar o exemplo mais recente, de grande repercussão midiática.
Preso ao modelo que vem sendo valorizado nos últimos anos, ao olhar a imensa crise institucional do país, de adoção de um pensamento panóptico (FOUCAULT, 1975), abordagem esta que traz como solução para as falhas, de controlados e controladores, a ampliação dos mecanismos de controle, com superposições de vigilância e investigação em múltiplas camadas. Mas, onde parar com isso? Vamos fazer accountability da accountability até que ponto? Para os que permanecem com essa perspectiva, vale lembrar que estudos recentes estão mostrando que as modernas estruturas de controle institucional funcionam bem apenas em países nos quais os agentes que agem em nome do Estado sabem e assumem que as regras do jogo vigentes exigem deles alinhamento real e concreto ao interesse público definido pelas leis (PERSON ET AL, 2013). A questão, então, é compreender porque isso não acontece em todos os países.
Há evidências atuais de que esse desafio pode ser mais bem compreendido pela perspectiva de problema de ação coletiva, descrita por Ostrom (1990), na célebre análise da tragédia do bem comum, que lhe valeu, em 2009, o Nobel de Economia. Ela evidencia que pescadores resolveram pensar no interesse de todos, quando perceberam que o interesse individual e particularista colocava em risco a fonte de renda que tinham. Ao agirem juntos, compreenderam que o incentivo que cada um tinha de retirar peixes em excesso do lago levaria, em pouco tempo, à extinção da fonte de renda de todos. O estudo conclui que, sob ameaça de um problema de ação coletiva, agentes auto interessados são capazes de agir cooperativamente na direção do interesse coletivo, segundo regras que eles mesmo definem como necessárias.
Rothstein e Teorell (2015) mostram que a Suécia do Século XIX superou um grave problema de ação coletiva, representado pela prevalência da ação auto interessada na sociedade, do desrespeito às normas e da corrupção generalizada. O gatilho foram as perdas geradas pela derrota na guerra com a Rússia (1808-1809). Com risco do desaparecimento do país, boa parte das instituições agiram conjuntamente e, ao mesmo tempo, construindo um pacto de mudança, denominada pelos autores de mudança institucional endógena.
Em apenas 25 anos, houve cooperação entre instituições e agentes para conferir validade às normas e gerar um ambiente de confiança e legitimidade institucional. Mungiu-Pippidi (2013a, 2013b), ao estudar o caso de superação da corrupção na Dinamarca, afirma que a sociedade civil pode constranger as instituições a buscarem solução para o problema produção do bem comum, indicando que o gatilho para mudanças endógenas pode advir da força coletiva.
Com os devidos ajustes à realidade brasileira, o que esses autores estão defendendo não é que sejam desnecessárias as estruturas de controle institucional, mas que essas têm efetividade limitada ao contexto. Elas são altamente eficazes quando as práticas não alinhadas são marginais, ou seja, não são a regra. Em lugares em que o não alinhamento dessa rede de atores com as políticas públicas, com a lei e com a sociedade, é a regra informal, não vai existir verdadeiro interesse em defender a legitimidade dos atos do Estado, sequer entre os próprios controladores. Existe, sim, uma alta probabilidade de ocorrerem escolhas políticas casuísticas e particularistas, bem como da regulação e da aplicação do direito se desviarem do que prometem os princípios e as normas jurídicas.
Assim, de volta ao título do artigo, para traduzi-lo e para sinalizar que o verdadeiro problema do “como controlar os guardiões?” parece não estar diretamente relacionado com as estruturas de controle em si mesmas, mas sim com a postura de toda a sociedade.
Parece haver elementos suficientes de que para a ampliação da efetividade do controle no Estado, inclusive sobre os controladores, faz-se necessário o enfrentamento de um problema de ação coletiva. Trata-se de transformação do contexto social e institucional, de forma que a resiliência à inobservância da lei ou à ação que atente contra o interesse público diminua consideravelmente.
Se Bo Rothstein estiver com a razão, os que mais têm condição de promover essa virada são os que ocupam posição de comando nos setores mais influentes da sociedade, e em todas as instituições que transitam no campo de poder do país, incluindo as agências de controle. Mas é preciso que elas tenham real interesse na mudança. Talvez a crise sem precedentes do Brasil, na atualidade, possa ser um estopim de motivação ainda não vivenciado internamente. Por outro lado, se a razão também contemplar Alina Mungiu-Pippidi, a sociedade civil pode auxiliar, diminuindo a aceitação social para a falta de legitimidade das ações dos representantes do Estado e promovendo constrangimento dos agentes que ocupam posições de comando para que tenham interesse na mudança.
Referências:
ANECHIARICO, F.; JACOBS, J. B. The pursuit of absolute integrity: how corruption control makes government ineffective. Chicago: The University of Chicago Press, 1996.
BOURDIEU, P. “Les juristes, gardiens de l’hypocrisie collective”. In: Chazel, François et Commaille, Jacques (orgs.). Normes juridiques et régulation sociale. Paris, LGDG, pp. 95-99, 1991.
BOURDIEU, P. Razões práticas: sobre a Teoria da Ação. São Paulo: Papirus. 1996.
BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 2010
CASTELLS, M. Ruptura: A crise da democracia liberal. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
FOULCAULT, M. Surveiller et Punir, Naissance de la Prision. Paris: Gallimard, 1975.
MUNGIU-PIPPIDI, A. Controlling Corruption Through Collective Action. Journal of Democracy, 24(1), 102-113. 2013a
MUNGIU-PIPPIDI, A. (2013b). Becoming Denmark: Historical Designs to Corruption Control. Social Research: An International Quarterly, 80,1259-1286. 2013b.
OSTROM, E. The Evolution of Institutions for Collective Action: Political Economoy of Institutions and Decisions. London: Cambridge University Press, 1990.
ROTHSTEIN, B. e TEORELL, J. Getting to Sweden, Part II: Breaking with Corruption in the Nineteenth Century. Scandinavian Political Studies, 38 (3), 238-254. 2015.
PERSSON, A., ROTHSTEIN, B., TEOREL, J. Why Anticorruption Reforms Fail —Systemic Corruption as a Collective Action Problem. An International Journal of Policy, Administration, and Institutions, Vol. 26, n. 3, July 2013.
*Leice Maria Garcia, doutora em Administração (CEPEAD/FACE/UFMG);
** Marcus Vinicius de Azevedo Braga, doutor em Políticas Públicas (PPED/IE/UFRJ).
Ambos estarão presentes no Seminário Internacional de Enfrentamento à Corrupção no Brasil (https://enfrentamento.com.br/).
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