E num pequeno jantar nas férias a gente esbarra no “oferecimento” do cardápio do restaurante escolhido apenas na opção QR CODE. Pronto! Começa ali uma divergência geracional. Afinal, na mesa, afetos de décadas também “separados” pelos anos do calendário da idade e pelo vírus mutante.
Esta única opção, a do QR CODE no cardápio, já tinha virado polêmica numa tímida comemoração de aniversário meses antes, onde os que ali estavam – felizes por finalmente se encontrarem depois de quase dois anos – frustrados ficaram permanecendo mais tempo tentando escolher seus drinks e pratos preferidos instalando o aplicativo do restaurante para só então, validar o código que daria acesso ao cardápio. Que odisseia!
Estranho foi identificar o que pra mim salta aos olhos, mas para os “incluídos“ tecnologicamente parece imperceptível: a exclusão, a segregação, a promoção da desigualdade entalada goela abaixo pelo chamado “setor de serviços”.
O uso da tecnologia que para muitos pode ser enxergado como um caminho inevitável e sem volta, algo que deve ser aceito sem questionamentos, parece ser um perigoso instrumento para deixar “a margem“ aqueles e aquelas que têm alguma dificuldade com o manuseio das telas e teclas.
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Não sou das que se prendem ao “antigo” como forma de não evolução ou negação ao aprendizado. Muito ao contrário! Mas sou uma alma inquieta e até revolta quando meus olhos miram a discriminação descarada com “ares” inovadores, cheirando a mofo do capitalismo na sua forma mais desumana.
Ora se você, considerado idoso ou não, tem alguma dificuldade em usar os recursos do seu aparelho celular, ou se é portador de alguma deficiência visual, você está enrascado para fazer algo que parece simples: pedir a própria comida no restaurante preferido. Se seu telefone ficou sem bateria então meu amigo, você está ainda mais lascado e permanecerá com fome ou sede a depender da necessidade mais urgente.
Não estou aqui a defender que não devemos ter o cardápio assim, no apontar da tela para o “código vigente”, estou a dizer que essa não pode e nem deve ser a única opção apenas para que seu estabelecimento pareça “moderno”.
A inclusão se faz urgente em tempos onde o chamado mercado, aquele mesmo que dita as regras para todos nós consumidores, anda pedindo “penico” e baixando a cabeça aprendendo a respeitar e a ouvir quem compra os seus produtos, pois como plurais que somos não há mais espaço para a falta de representatividade na relação compra e venda.
Aos que bradam que é o mercado quem manda e que acompanhar as mudanças tecnológicas será o único meio de subsistência, é preciso clarear as ideias e teclar o “F5” no notebook ou o “atualizar” no Android, para lembrar que empresas começam a perceber que a exclusão pode custar caro e gerar prejuízos no balanço final dos seus lucros.
Nunca se fez tanto comercial pensando na representatividade da população negra, LGBTQIA+, nas mulheres, nas pessoas com alguma deficiência, nos povos indígenas e outros grupos historicamente esquecidos e discriminados pelo business.
Se o processo civilizatório está também atrelado aos avanços tecnológicos, parece óbvio e fundamental que ele se dê através de todas as formas possíveis de comunicação. Inclusive o velho e bom cardápio físico ou até mesmo aquele diálogo cheio de intimidade com o garçom no restaurante de estimação para pedir o prato do dia.
Quando ouço alguém dizer que ou se aceita as “maravilhas” tecnológicas e se rejeita o passado ou não sobreviveremos ao novo, só consigo lembrar daquele samba gostoso na voz de Paulinho da Viola: “Há muito tempo eu escuto esse papo furado dizendo que o samba acabou…só se foi quando o dia clareou!”
Por estas razões é que volto meus olhos (agora usando óculos) para o futuro sem jamais esquecer do passado. Afinal, os livros físicos não deixaram de existir, o samba não acabou, os museus sobrevivem, a carga de vitamina D diária é mais importante para sua existência que a carga de bateria do seu celular e até o “mercado” sabe que não existe futuro sem pluralidade para as escolhas.
De resto, pois comecei e termino com ele, se você acredita que o cardápio em QR CODE é uma tendência inevitável dos tempos tecnológicos, pense no enigma da esfinge, aquele contado na tragédia grega Édipo Rei: ou você o decifra ou ele te devora!
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