Marcus Vinicius de Azevedo Braga*
Ulrich Beck (1944-2015), sociólogo alemão, em uma de suas obras², trata da metáfora do ébrio que perde seus óculos na rua a noite, e começa a procura-los no facho de luz do poste de iluminação, e ao ser perguntado se foi ali que ele perdeu os óculos, ele responde que não, mas que naquele local é mais fácil de se procurar.
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Essa singela anedota serve de introdução para o tema que será debatido nessas linhas: a utilização de mecanismos de prevenção à corrupção inseridos como condição de participação ou classificação de certames licitatórios. O artigo, de forma provocativa, vai trazer a baila a discussão de que ao contrário do ébrio, deve-se procurar os óculos no lugar certo, e não no mais fácil.
Uma visão due diligence da questão
Em um contexto de acordos internacionais, e de mobilizações internas e externas, tendo como culminância a chamada Operação Lava Jato e toda uma gama de consequências a partir desta, o tema da corrupção assume uma centralidade no Brasil nunca vista no campo das políticas públicas e da sua gestão, e com isso, ganha corpo nessa discussão, no reino das soluções, a ideia de compliance, conceito que se aplica a postura de aderência de empresas aos entes reguladores, na busca de evitar sanções financeiras e reputacionais, e que desembarca no universo anticorrupção, por força também da novel Lei Federal n° 12.846/2013, traduzido esse compliance em uma ideia de integridade.
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Das muitas práticas e visões trazidas por esse novo normal, a ideia de due diligence é uma que adquiriu bastante força, e traduzida de forma simples como “diligência prévia”, na temática anticorrupção esse conceito trata de uma avaliação prévia antes de uma contratação, como uma medida protetiva na relação com terceiros, para que caso estes estejam relacionados a atos corruptos, essa questão não contamine a organização contratante.
É uma forma de se mitigar o risco de corrupção garantindo a adesão a certos standards de caráter preventivo pelas partes relacionadas, e no caso dos governos, essas partes são, entre outros, o conjunto de fornecedores no contexto dos diversos contratos administrativos e acordos congêneres que possibilitam a gestão das políticas públicas, e essa relação com o mundo privado é a principal fonte de corrupção no setor governamental.
Um contrato com o governo é uma relação, e que pode ter medidas que protejam o ente estatal na relação com esse ator, em que pese seja essa uma discussão que sempre esbarra em um princípio central nas licitações públicas, que é a isonomia, dado que o due diligence se preocupa com o histórico da organização entrante, ás vezes eivado de preconceitos e de informações não confirmadas, e esse tipo de vedação pode afetar os processos concorrenciais e o banimento, como mecanismo, é bem definido nos conceitos de inidoneidade e suspensão previstos nas normas de licitações.
Mas o fato é que esse princípio, de se proteger na relação com terceiros na questão anticorrupção, já existia latente nos normativos sobre licitação, e essa visão assume agora uma outra vertente, com exigências específicas diante da centralidade assumida pela probidade.
Externalidades e o poder indutor do Estado comprador
O governo, dentro de sua base territorial, costuma ser o maior comprador. E os governos sabem disso, e se utilizam dessa situação na geração de externalidades. Não é a toa que a fase de habilitação dos licitantes, que deveria ser uma medida para dar conta dos riscos afetos a sustentabilidade da futura contratação, em termos de garantia razoável de que o contratado tem condições de honrar seus compromissos, extrapola para outras questões, às vezes estranhas ao processo.
A habilitação jurídica e a qualificação econômico-financeira ajudam a combater a informalidade; a regularidade fiscal e trabalhista reduz a sonegação de tributos; e outros mecanismos surgiram ainda nessa trajetória, como o estímulo a Microempresa e a Empresa de Pequeno Porte (Lei Complementar Federal nº 123/2006), ou ainda, conceitos ligados ao meio ambiente, como desenvolvimento nacional sustentável (Lei Federal n° 12.349/2010), ou externalidades no combate ao trabalho infantil, na declaração prevista na Lei Federal n° 9.854/1999.
Esse uso do poder econômico como comprador para promover externalidades, afeta a dinâmica das licitações, por restringir mercados ou imputar custos desnecessários, com benefícios duvidáveis de alguns desses mecanismos, como a citada declaração de que a empresa não emprega menor de idade, sendo mecanismos de indução de comportamentos válidos, mas que devem ser olhados no contexto do processo de relação dos governos com os mercados, para suprir as suas necessidades.
Essas exigências tem um caráter de due diligence, pois não seria cabível o governo, que deve promover determinados valores, estabelecer relações onerosas com atores que não honram estes mesmos valores, protegendo previamente a relação, e a onda anticorrupção também pegou carona no poder indutor das contratações governamentais, na busca de promover externalidades, como se verá no próximo tópico.
A integridade desembarca na extensa praia das contratações
A lei anticorrupção tem um viés muito forte de focar no mercado como uma das fontes da improbidade, regulando a equação dessa relação com o governo, enxergando corruptos e corruptores. Não é à toa que a Lei Anticorrupção se chamou inicialmente de “lei da empresa limpa”, como uma forma de induzir a integridade no ambiente privado por meio da possibilidade de punições pesadas e de prejuízos à imagem.
Mas esse movimento veio acompanhado também de ações de incentivo, da adoção pelas empresas dos chamados programas de integridade, na mitigação de penalidades, como um mecanismo para prevenir, detectar, remediar e punir fraudes e atos de corrupção. Ou seja, um conjunto de medidas interna corporis para dar conta do risco de corrupção nas empresas, recrutando o setor privado na tarefa de se reduzir a corrupção, de interesse geral.
Mas a coisa avançou para o poder indutor do Estado comprador, na ideia de proteção em relação aos parceiros na seara anticorrupção, e um conjunto de leis subnacionais³ tem trazido como exigência de habilitação de empresas em certames licitatórios, em contratações a partir de determinado valor, que estas tenham um programa de integridade efetivo, em uma exigência fronteiriça, e que tem muito ainda a se discutir.
Os tipos e requisitos desse programa renderiam um artigo único, e existem outros mecanismos similares que tem sido adotados nesse sentido nos editais, como impedimento de empregados terceirizados terem vínculos de parentesco com os servidores do órgão (Decreto Federal nº 7.203/2010) e até a exigência de processo seletivo para escolha dos empregados terceirizados de forma democrática e impessoal, em um movimento crescente e inovador, que inspira cuidados, pois quem trabalha com controles internos sabe que cada salvaguarda criada deve ser sopesada diante dos riscos aos quais ela se refere.
Uma proposta balizadora para essas salvaguardas anticorrupção
Para que como o ébrio, não se perca tempo procurando os óculos aonde ele não está, ainda que seja a via mais fácil, propõe-se aqui cinco parâmetros objetivos que podem ser observados diante da inserção de mecanismos anticorrupção como requisitos de habilitação em licitações, dado que a corrupção é um risco, e que deve ser contextualizado para a sua melhor prevenção.
Toda inclusão dessa natureza deve ser precedida, dentro do princípio da legalidade, de amparo legal. Mas em um cenário crescente de produção de conhecimento, de normatização nesse tema, com autonomia subnacional, com direito a decretos e instruções normativas, essa visão balizadora pode ser um bom mediador dessas construções, no abstrato da norma e no concreto de cada edital. Eis os parâmetros balizadores:
-Custos processuais: Se a inclusão de um procedimento ou a exigência de organização de um programa de integridade é exigência para participação de um certame, o custo advindo da adoção dessa prática pela empresa será repassado ao contrato. Ainda que diluído em múltiplas contratações, é mais um custo, diretamente proporcional ao requinte exigido, e por não ser opcional, comporá a planilha de insumos unitários;
-Custos de transação: ao se exigir que a empresa licitante adote um determinado procedimento, existe um custo de monitoramento e de verificação desse mecanismo, imputado também ao contratante público. E esse custo se dá durante todo o contrato celebrado, e pode envolver questões complexas no que se refere a corrupção, como a avaliação da efetividade de um programa de integridade;
-Estímulo a concorrência: qualquer exigência de habilitação de licitante é um inibidor da concorrência. Ao mesmo tempo que induz a aderência, diminui os possíveis candidatos a prestação do serviço. E dependendo da complexidade da contratação e da exigência, e da localização do objeto licitado, esse desejo de inibir a corrupção pode ter um efeito adverso;
-Relevância do risco: A exigência de uma salvaguarda anticorrupção não pode ser algo padronizado, guardando relação direta com os riscos de corrupção daquele contrato. Se é intensivo de mão e obra, o nepotismo é um risco presente. Corrupção é um risco, contextualizado, e que precisa ser entendido assim na exigência de salvaguardas que não onerem desnecessariamente os governos; e
– Efetividade da Resposta: Da mesma forma, entendido o risco de corrupção na contratação, dimensionado dentro do impacto e da probabilidade, esse deve ser tratado com uma salvaguarda barata e efetiva. Se o risco é de nepotismo, será que apenas uma declaração da empresa é o suficiente? Riscos relevantes merecem um tratamento adequado e sério, o que é melhor do que tratar de qualquer maneira todo o universo dos riscos identificados.
Princípios simples e que podem balizar o legislador, inclusive no campo infralegal, bem como os gestores os auditores, na construção e na avaliação de medidas anticorrupção que promovam a probidade das contratações públicas, não enxergando assim a corrupção como um problema insulado da gestão.
Como o ébrio que busca seus óculos no lugar errado, perdendo o seu tempo com medidas sem efetividade, tem-se que quanto mais mecanismos anticorrupção são criados, mais existe a possibilidade de se fortalecer as patologias da burocracia, que inibem a eficiência, o que afeta o interesse público, alvo maior da corrupção.
Corrupção é um problema muito sério, que merece um tratamento adequado, para proteger a gestão e garantir a sua efetividade. Mas esse mesmo tratamento não pode ser contrário ao espírito da boa contratação, demandando alinhamento dos processos de compliance com a governança.
*Doutor em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento pela UFRJ (GPP/PPED/IE/UFRJ). Auditor do Setor Público. Autor de livros e artigos na área do controle governamental.
[2] BECK, U. Sociedade de Risco Mundial. Em busca da segurança perdida. Lisboa: Edições 70, 2018.
[3] Existem outras e a promulgação desse tipo de norma é crescente. Mas as pioneiras são as leis do Estado do Rio de Janeiro (Lei n° 7.753/2017) e do Distrito Federal (Lei n° 6.112/2018).
[4] ANECHIARICO, F.; JACOBS, J. B. The pursuit of absolute integrity: how corruption control makes government ineffective. Chicago: The University of Chicago Press, 1996.
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