Fernando Real*
Julgar que a pandemia do novo coronavírus humano, SARS-CoV-2, seria passageira findando em alguns meses foi um erro que custou muitas vidas. Podemos estar diante de um novo erro de julgamento, depositando demasiadamente nossas esperanças na vacinação quando ela é apenas uma parte do enfrentamento da covid-19. Poucos encaram seriamente a possibilidade de a pandemia persistir.
Estamos desprotegidos e pouco precavidos para um cenário – tangível – no qual o vírus escaparia da imunização fornecida pelas vacinas que tomamos hoje. É preciso encarar a possibilidade de intervenções não-farmacêuticas como lockdown, distanciamento social e uso de máscaras continuarem sendo parte importante da estratégia de contenção e possível erradicação desse vírus pós-vacinação.
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Em janeiro passado, a revista Nature entrevistou mais de cem cientistas atuantes na pesquisa sobre o novo coronavírus e 90% deles responderam que o SARS-CoV-2 não será erradicado, transformando a pandemia numa endemia. Ou seja, o vírus continuará circulando em algumas regiões do planeta apesar das vacinas. Para esses cientistas, o principal fator que permitirá essa possível (ainda não comprovada) persistência do SARS-CoV-2 na população humana seria sua capacidade de escapar das defesas do nosso sistema imunológico geradas tanto pela infecção natural ou pela vacinação [1].
As variantes do SARS-CoV-2 estão no cerne desse cenário. Como é típico dos vírus, o SARS-CoV-2 entra em nossas células e as usa como fábrica de muitas cópias de si mesmo, espalhando a infecção para outras células – dentro do nosso organismo e depois, dele para outros organismos.
O processo é falho e essa replicação viral gera frequentemente vírus diferentes do original. Essas diferenças na maior parte das vezes prejudicam o vírus (que não consegue, por exemplo, ser montado na fábrica da célula hospedeira). Mas às vezes um vírus um pouco diferente do original pode, por exemplo, ter maior afinidade com nossas células, se copiar mais rápido dentro delas, multiplicar-se por mais tempo ou for mais resistente ao ambiente externo do hospedeiro. Isso confere uma vantagem imediata dessa cópia aberrante do vírus frente ao vírus original. Surge assim uma variante. Em alguns meses, essa variante mais bem-sucedida toma o lugar do vírus da qual é originária.
Assim se dá a evolução do SARS-CoV-2 na população humana.
O vírus que conhecemos em 2019 já não é mais o mesmo. Ele se transformou e continua se transformando enquanto se multiplica e se espalha pela população mundial. Enquanto o vírus puder se replicar, ele irá gerar variantes. Quando essa variante é tão bem-sucedida que passa a ser encontrada em maior incidência que o vírus original numa determinada população, atribui-se a ela a alcunha de variante preocupante.
A variante preocupante mais recentemente identificada é a B.1.617 que foi descoberta na Índia em outubro de 2020, somando-se às variantes preocupantes brasileira P.1 (dezembro de 2020), inglesa B.1.1.7 (setembro de 2020) e sul-africana B.1.351 (agosto de 2020). A variante inglesa é potencialmente mais infecciosa e mais letal [2], o que pode se aplicar às novas variantes.
Elas surgirão provavelmente de um processo evolutivo convergente, no qual diferentes variantes, emergindo em diferentes localidades, apresentarão mutações comuns que beneficiarão a persistência do vírus [3]. Em alguns meses uma variante pouco comum e recém-identificada pode explosivamente tomar o lugar de todas as outras: a variante brasileira P.1, por exemplo, levou aproximadamente quatro meses para se tornar a variante prevalente na população brasileira [4].
Com as vacinas, entramos numa corrida contra a evolução do vírus. As vacinas disponíveis hoje foram desenvolvidas para o vírus original, detectado no final de 2019. Apesar de reduzirem drasticamente hospitalizações e morte pela covid-19, os anticorpos induzidos por essas vacinas apresentaram reduzida capacidade de neutralizar alguns desses novos vírus [5].
As vacinas não bloqueiam completamente a transmissão do vírus entre as pessoas vacinadas, mesmo que essa transmissão seja bastante reduzida pelos imunizantes da Oxford-AstraZeneca e Pfizer-BioNTech [6]. Recentemente, dois casos de infecção pelo SARS-CoV-2 foram relatados em indivíduos já vacinados com duas doses da vacina Pfizer-BioNTech, considerada de alta eficácia, nos quais variantes estão diretamente implicadas [7]. A vacina da Oxford-AstraZeneca não impediu que muitos indivíduos vacinados com esse imunizante desenvolvessem formas leves e moderadas de covid-19 quando infectados pela variante sul-africana [8]. Não se sabe ainda se esses indivíduos são bons propagadores do vírus, mas a replicação viral dentro de um organismo vacinado não é bom augúrio. Lembremos que onde houver chance de replicação, haverá chance de formação de variantes.
Os fabricantes das vacinas de mRNA Pfizer-BioNTech e Moderna já se pronunciaram a respeito de um reforço vacinal, ou uma terceira dose de suas imunizantes, de modo a reforçar a proteção dos vacinados e impedir a chance de, mesmo imunizados, serem portadores e transmissores do coronavírus [9]. Há também certamente a possibilidade de estabelecermos um calendário vacinal anual que compreenda a imunização contra diferentes variantes, num modelo de vacina polivalente um pouco aos moldes do que é feito com a gripe comum.
Resta, é claro, o imenso desafio de testar a nova vacina e imunizar em massa sempre que aparecer uma nova variante. A emergência periódica de novas variantes preocupantes continuará a ser uma ameaça para as populações vacinadas, enquanto partes do planeta estão vulneráveis e não dispõem de vacinas efetivas.
Temos que achar a melhor vacina (eficaz e disponível facilmente para todos em escala global) e vacinar coordenadamente, mantendo as intervenções não-farmacêuticas durante e após alguns meses da campanha vacinal. Quanto menor a eficácia de uma vacina ou maior o seu atraso em atingir boa parcela de uma determinada população, maior a necessidade, o rigor e a duração de medidas restritivas incluindo uso de máscaras, distanciamento social e – sim – eventualmente lockdown,. Essas medidas vão frear a rápida evolução do vírus e a formação de novas variantes, conferindo uma importante – se não fundamental – vantagem ao ainda lento e desafiador plano de vacinação em larga escala nessa corrida contra o esquivo SARS-CoV-2.
[1] https://www.nature.com/articles/d41586-021-00396-2
[2] https://www.nature.com/articles/s41586-021-03426-1
[3] https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2021.02.12.21251658v1.full-text
[5] https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMc2100362
[7] https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa2105000
[9] https://www.nytimes.com/2021/04/16/world/pfizer-vaccine-booster.html
*Fernando Real é doutor pela Universidade Federal de São Paulo, livre-docente pela Universidade de Paris e pesquisador do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) da França.
Veja também, do mesmo autor:
> O que se sabe sobre os efeitos adversos da vacina da AstraZeneca
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