Denise Motta Dau *
O descalabro do governo Bolsonaro e seus crimes sucessivos contra a humanidade não deixaram de ser denunciados pelas organizações da sociedade civil, tanto brasileiras quanto internacionais. A escalada, no entanto, segue impune. E, por causa dessa impunidade, os crimes avançam aceleradamente. Tanto que as milhares de mortes evitáveis de brasileiros vão se mostrando banalizadas. No entanto, a civilidade não perde seus fios: o da história e o da ética. São esses fios que o Tribunal Penal dos Povos (TPP) tem puxado, com o julgamento realizado em maio, cujo desfecho será divulgado em breve. O TPP expressa a sociedade internacional humanista e civilizada. E muitos de seus julgamentos embasaram ações institucionais.
Sob uma pandemia que transtornou todo o mundo, no Brasil milhares de vidas seguiram ceifadas deliberadamente no momento em que os recursos científicos já estavam acessíveis. A espiral da política excludente, autoritária e cruel de Bolsonaro teve seus alvos prediletos: indígenas, negros e o pelotão de frente de defesa da doença os profissionais da saúde pública e privada, que tantas mortes evitaram, mesmo perdendo as próprias ou adoecendo. E a matança deliberada segue, sem que as instituições democráticas, mantidas pela população para vigiar e punir excessos, cumpram seu papel.
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Nós somos a Internacional dos Serviços Públicos (ISP ou PSI, Public Service International, da sigla em inglês), uma sindical global que reúne 30 milhões de trabalhadores em 154 países, inclusive o Brasil. Parte de nossos filiados atua diretamente na saúde, seja pública e privada. Pois, no Brasil, os trabalhadores da saúde que atuaram e seguem na linha de frente do combate à pandemia continuam alvos dessa aterradora política.
A ISP foi uma das autoras da denúncia contra o governo Bolsonaro que ocorreu na 50ª sessão do TPP, denominada “Pandemia e autoritarismo”, ao lado da Comissão Arns, da Coalizão Negra Por Direitos e da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Denunciamos e comprovamos: o governo Bolsonaro disseminou intencionalmente o coronavírus, com ações e omissões, causando milhares de mortes evitáveis.
Na peça denunciatória e durante o julgamento, apresentamos dados e duas importantes pesquisas: a da ISP “Trabalhadoras e trabalhadores protegidos salvam vidas”, realizada em 2020, indicando que 54% dos trabalhadores em saúde do setor privado e público estavam em sofrimento psíquico; e a outra da Fundação Osvaldo Cruz, realizada em 2021, indicando que esse índice chegou posteriormente a 60%. Foram, portanto, provas irrefutáveis de que não foi implementada uma política de proteção para a principal categoria da linha de frente no combate à pandemia: os profissionais de saúde.
PublicidadeHoje, diante de uma população a cada dia mais exaurida, adoentada e com sequelas – sob o olhar menos atento da imprensa e da opinião pública para os crimes seriados e impunes –, observamos os escândalos, como os do processo de desmonte do SUS, do desperdício de vacinas, da falta de medicamentos e da forte desvalorização dos profissionais da saúde acabarem banalizados no cotidiano brasileiro. Os profissionais da saúde precisam ser recompensados. Sequer as famílias de órfãos desses trabalhadores foram acolhidas e o piso salarial do setor, finalmente aprovado no Congresso Nacional, segue agurdando sanção presidencial. A mortalidade desproporcional da população negra e indígena continua em alta constante.
Não é possível esquecer. Neste mês de julho, o Brasil ultrapassa 675 mil mortos. São notórios o esgotamento das redes de saúde e a escandalosa inexistência de políticas de atenção proporcionais para as principais vítimas da pandemia: indígenas, negros e profissionais da saúde.
O resultado do julgamento do governo Bolsonaro será anunciado em breve. Sua relevância é gigantesca. Matanças não podem ser banalizadas. Nem omissões. Assim, esse julgamento “lava a alma” e alerta para a absurda omissão de instâncias remuneradas por nós e que deveriam cumprir o papel de salvar e dignificar vidas.
Por isso a importância do resultado do julgamento e da sua memória. Nunca nos esqueceremos – mesmo com as atuais “bondades” eleitorais do momento –, da matança e do abandono dos profissionais da saúde brasileira em seus momentos mais terríveis, nem das populações mais vulneráveis. Que a decisão, tão esperada, nos ajude a honrar a defesa do direito à vida acima do lucro e contra o autoritarismo. Precisamos desse marco histórico e ético para que a escalada seja contida.
* Denise Motta Dau é secretária sub-regional da Internacional de Serviços Públicos (ISP) no Brasil. Graduada em Serviço Social, é mestra em Saúde Coletiva.
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