André Sather* e Renato Ferreira**
Em meio ao caos pandêmico que faz o Brasil ter cerca de 50% das mortes diárias por covid-19 do mundo, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), defendeu a alteração da legislação que trata da participação da iniciativa privada no esforço de imunização da população. A ideia seria modificar a recentíssima Lei no 14.125, de 10 de março de 2021, essencialmente para eliminar a obrigação de doação das vacinas adquiridas por privados ao Sistema Único de Saúde (SUS).
Chama a atenção, na defesa dessa proposta – veiculada pelo Projeto de Lei no 948, de 2021 -, a analogia do presidente da Câmara com a “situação de guerra” que o Brasil enfrenta. A ideia seria de que a medida excepcional de permitir a importação de vacinas para uso paralelo ao do Programa Nacional de Imunizações (PNI) se justificaria pela guerra travada no país contra os efeitos da pandemia.
O problema de falar em um “vale tudo” no caos sanitário que de fato se assemelha a uma guerra é que existem, nos países conflagrados, dois tipos bem diferentes de situações excepcionais. Se de um lado existe um esforço excepcional, uma mobilização extraordinária para vencer a guerra, por outro lado existe um convívio social sob circunstâncias excepcionais, uma forte tendência, igualmente extraordinária, à desordem interna. No caso do PL 948, embora a fala de Arthur Lira mencione que vale tudo “para salvar vidas”, o fato é que não parece que estamos diante do primeiro tipo de “vale tudo”, mas sim do segundo.
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Os grandes conflitos militares da História mostram que as guerras envolvem tanto a excepcionalidade do esforço, em especial no aspecto industrial e financeiro, e a excepcionalidade das relações internas, com uma notável agudização da violência entre pessoas e entre classes sociais.
Países em guerra convertem fábricas de bens de consumo em fábricas de armamentos, emitem “títulos de guerra” para financiar os conflitos e deslocam largos contingentes populacionais de atividades civis para as atividades militares ou de apoio logístico ao conflito. Por outro lado, observam desordem social diante da escassez de produtos básicos, dificuldades regulatórias de bens e serviços, mercados paralelos e degradação de relações de trabalho e de relações sociais, chegando, em momentos críticos, à geração de ondas de fome, miséria e de refugiados. Se de um lado há um “vale tudo” no esforço coletivo para vencer a guerra e restaurar a paz, há também, de outro, um “vale tudo” individual, que representa uma luta interna por sobrevivência e melhores condições de vida, em contexto de severa escassez.
PublicidadeEmbora o presidente da Câmara dos Deputados pareça fazer referência, no caso do PL relacionado às vacinas privadas, ao esforço de guerra coordenado, semelhante ao da conversão de fábricas de bens de consumo em fábricas de armamento, a proposição em si não parece representar esse tipo de iniciativa. Afinal, já há um marco legal, muito recente, da participação da iniciativa privada na mobilização nacional pela imunização. Esse marco prevê a doação integral das vacinas importadas ao SUS, enquanto houver grupos prioritários sem cobertura, e a doação de metade das importações depois que estiverem imunizados os grupos prioritários. Agora, o que se propõe é liberar totalmente as importações dessas obrigações, liberando imediatamente as doses importadas para distribuição numa lógica totalmente privada.
É difícil negar que o PL da “vacina VIP” é, assim, uma excepcionalidade muito mais parecida com as desordens nas filas de produtos racionados, as dificuldades regulatórias internas de países em conflito e a degradação das relações sociais que levam a ondas de miséria e de refugiados. Cuida-se muito mais da iniciativa de “salvar algumas vidas em detrimento de outras” do que de um esforço de coordenação para ter mais equipamentos para o conflito militar (ou, no caso, o esforço para ter mais vacinas).
A Segunda Guerra Mundial deixou de tal forma clara a existência de duas maneiras de enfrentar a tragédia que um livro do pós-Guerra, “O Senhor das Moscas”, contém uma das melhores alegorias desses caminhos. Na obra, um grupo de meninos se vê isolado numa ilha após a queda da aeronave em que viajava e se divide em dois grupos, com princípios opostos. Enquanto um grupo busca se coordenar e estabelecer um enfrentamento coletivo, racional e ordenado da escassez e dos riscos, outro grupo atua de modo a estimular os conflitos e os ataques, privilegiando o enfrentamento individual da crise. Sem antecipar o final do livro, é interessante a maneira como ele expõe as duas lógicas e o choque entre os dois sistemas…
Se o Brasil investir no enfrentamento individualizado de uma crise coletiva como a da pandemia da covid-19, como faz o PL da “vacina VIP”, estará adotando um caminho que costuma ter profundas consequências em termos de desintegração e conflito social. Se todos precisam desesperadamente de vacinas e apenas alguns poucos as têm, simplesmente por terem mais recursos (e não por uma decisão legítima), como administrar a tendência à violência? Se o PNI for deixado “às moscas”, após a imunização dos que têm recursos, como controlar a revolta daqueles que não terão vacinas por pura falta de condições econômicas?
Nos parece que trilhar o caminho do individualismo sem freios diante de uma grave crise eminentemente coletiva pode representar a descida de alguns degraus civilizatórios. Podemos estar caminhando na direção do estado de natureza hobbesiano. Talvez, nessa perspectiva, o PL em questão seja uma boa síntese do Brasil: um País em que se fez Estado sem que houvesse sociedade. Não houve o pacto social, mas sim o transplante de uma institucionalidade estrangeira, movida exclusivamente pela cobiça. Diante dessa realidade, o Leviatã brasileiro não paira sobre todos, na verdade, torna-se mais um na guerra de todos contra todos.
Como ele é forte, há os que tentam dominá-lo para, com seus poderes, oprimir e vencer os adversários. E há os que tentam arrancar nacos de sua carne, sem serem percebidos ou combatidos. Em outras palavras, do Leviatã nacional só se beneficia uma elite extrativista. Que, diante da perspectiva da morte e ciente do fracasso do Estado em conseguir vacinas, não hesita em avançar com urgência inaudita para conseguir as suas próprias – ainda que se arriscando a tomar soro fisiológico. Outra ironia que sintetiza bem a situação – na guerra de todos contra todos, tanto pode vencer o mais forte quanto o mais esperto.
O PL defendido por Artur Lira permite que, na disputa pelas vacinas, os indivíduos mais fortes (com mais recursos) sejam o lobo dos mais fracos (com menos recursos). Esse caminho leva à chamada armadilha hobbesiana, em que, para sobreviver, a pessoa tem que ser no mínimo tão violenta quanto o seu vizinho. O contrato social, ao contrário, estabelece a possibilidade da cooperação, fundada na vontade – é um acordo de adesão voluntária, ainda que incondicional. Por essa razão, Hobbes é considerado fundador da Ciência Política moderna. Em uma situação de caos, o Leviatã deveria liderar os esforços de solução e saída da crise, não tirar férias milionárias e curtir feriados como se não houvessem quase quatro mil mortes diárias no país.
Tristes trópicos, nos quais ainda se trilham os caminhos do estado de natureza. Sabemos há quase 500 anos, não apenas não salva vidas, mas faz a vida do homem solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta.
*André Sathler é economista, mestre em Comunicação Social e em Informática e doutor em Filosofia
**Renato Ferreira é advogado, mestre em Direito e doutor em Ciência Política.
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