*Paulo Rocha
Nos últimos anos, passamos a conviver com ameaças cotidianas à democracia – muitas vezes banalizadas por nossas instituições – por meio de um presidente que se diz com estômago embrulhado por ter que atuar sob a Constituição. Então, o episódio do último final de semana de março deste 2022 é emblemático e merece ser debatido a partir de seu núcleo.
Os fatos: no sábado (26), a cantora britânica Marina, seguida por Pablo Vittar, fazem manifestações contra Bolsonaro no palco do festival internacional de música Lollapalooza, em São Paulo. Durante sua apresentação, Pablo também exibe bandeira com o rosto do ex-presidente Lula. O público, em ambas as ocasiões, aplaude as iniciativas e se manifesta contra Bolsonaro. A partir daí, o partido do presidente requer ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que impeça mais artistas de se pronunciarem no festival a favor de “possível candidato ao cargo de presidente da República”. Um ministro do TSE defere a liminar, impondo multa de R$ 50 mil à organização caso se descumpra a ordem. Dois dias depois, na segunda-feira, já encerrado o evento musical, revoga a própria decisão e atribui ao partido que representou a peça a tentativa de censura.
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À guisa de tentar amordaçar cantores, tanto o partido do presidente quanto o ministro da corte eleitoral colheram efeito contrário. Uniram artistas, sociedade, meios de comunicação e, principalmente, juristas que, ancorados na lei e na jurisprudência do próprio TSE, não tergiversaram: houve censura.
Aqui, cabe uma rápida análise jurídica. De saída, para ressaltar que, de acordo com o art. 18, parág. 1.º da Resolução 23.610/2019 do TSE, que regulamenta a propaganda eleitoral, é permitido, a qualquer tempo, que uma cidadã ou um cidadão use bandeira, broche, adesivo, camiseta etc para manifestar sua preferência política. Apenas partidos e candidatos é que não podem confeccionar material de propaganda eleitoral antes do período da campanha, que neste ano se inicia em 15 de agosto. É o que diz a Lei 9.504/1997, em seu art. 36, caput. Alguém ainda poderia suscitar a esdrúxula tese do showmício, mas, aqui, para ser breve, basta dizer que um festival privado de música realizado desde 2012 não pode, à luz do bom senso, ser confundido com showmício.
Pacificada a inexistência de crime no fato de uma artista levantar bandeira de alguém com quem simpatize, ou no ato de protesto contra político pelo qual não nutre admiração, há que se condenar outro assombro da liminar concedida: a censura prévia, igualmente à margem da Constituição. Somadas as interpretações desligadas da lei, este caldeirão cozinha o prato perfeito apenas aos que colocam em xeque regras democráticas e instituições e apostam na confusão e no caos para atingir seus objetivos nada republicanos.
PublicidadeÉ forçoso reconhecer, todavia, a tradição do TSE de aclamar, por seu espírito democrático, a liberdade de expressão política individual. Afinal, a livre circulação de ideias, opiniões e críticas tem o condão de fortalecer o Estado Democrático de Direito. O contrário é a mordaça e a venda, e, com elas, o silêncio e a escuridão.
Não à toa, artistas que se apresentaram no domingo, que sequer estavam no castlist, cantaram em coro contra a decisão solitária do ministro. “Cala boca já morreu, quem manda na minha boca sou eu”, bradou Lulu Santos, num refrão que transbordou do palco para as redes sociais. Anitta foi além e se comprometeu a pagar a tal multa, caso algum colega quisesse se manifestar no palco. Foi ouvida por muitos. No domingo, último dia do evento, os gritos e protestos – contra Bolsonaro e contra a censura – multiplicaram-se no palco, no gramado, nas redes.
O episódio ocorre na semana em que se completam 58 anos do golpe militar no Brasil. Mas também na semana em que perdemos o multiartista Elifas Andreato, que por mais de meio século exibiu em cores sua bandeira principal: a resistência cultural ao autoritarismo e à repressão. Não guardamos os pincéis de Elifas Andreato, e os empunhamos, com a classe artística, na luta contra o atual “estágio de civilização inacreditável”, como ele definia a série de abusos e ataques à cultura, aos movimentos sociais, ao meio ambiente, à educação, à saúde, à vida. Que o lamentável episódio de tentativa de censura a artistas ensine e oriente melhor o traço de nossas instituições no grande caderno de nossa democracia.
* Paulo Rocha é parlamentar eleito pelo Pará e Líder do PT no Senado Federal
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