Guilherme Lacerda* e Lucas Hoogerbrugge **
O impacto da pandemia do novo coronavírus no funcionamento da educação básica brasileira evidencia a falta que faz a regulamentação de um Sistema Nacional de Educação (SNE), prevista desde a promulgação da Constituição Federal de 1988. A cooperação entre os entes federados se mostra cada vez mais necessária num país de dimensões continentais, enorme heterogeneidade regional e marcadas iniquidades sociais. Isso sem mencionar a desigualdade de recursos técnicos e financeiros disponíveis para as secretarias de educação. Somadas a esses fatores, as dificuldades derivadas da desarticulação entre os níveis de governo, que já eram marcantes no Brasil pré-pandemia, ficaram ainda mais profundas e evidentes na crise pela qual passamos. As histórias de Ana e Pedro, que contamos a seguir, ilustram isso.
Ana, que cursa o 3o ano do Ensino Médio em uma escola estadual, viu na televisão que as aulas presenciais recomeçam na segunda semana de agosto. As recomendações de distanciamento social, contudo, se mantêm, e todos querem evitar que ela volte a pegar o ônibus. Ela estava começando a se adaptar a uma rotina de aulas remotas: por meio de canais públicos de televisão e uma plataforma online, Ana e seus colegas vinham assistindo aulas e entregando exercícios. Embora esteja feliz de voltar a ter aulas presenciais, está confusa, pois ainda não recebeu nenhuma orientação formal quanto à volta à escola; seus colegas e professores tampouco sabem o que acontecerá. Para complicar a situação, ela não tem conseguido se concentrar direito nos estudos para o Enem e está insegura, sentindo que não conseguirá entrar na faculdade. As orientações truncadas do Ministério da Educação não ajudam e ela não sabe se o tempo de estudos após o retorno às aulas presenciais será suficiente para ajudá-la a se preparar para o exame, que foi adiado para janeiro.
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Já as aulas presenciais de seu irmão Pedro, que cursa o 4o ano do Ensino Fundamental em uma escola municipal, não voltarão antes de setembro. A família tem clareza dessa informação porque recebe comunicados semanais por mensagem de texto e tem acesso a um canal de dúvidas da secretaria de educação. O problema é outro: Pedro está em casa há mais de quatro meses e ainda não há uma definição de qual a estratégia para mantê-lo estudando durante a quarentena. A prefeitura já anunciou que não tem a infraestrutura ou os recursos para colocar de pé o estúdio e a plataforma necessários para a gravação e disponibilização de aulas, mas está avaliando outras possibilidades. Alega que além de não ter recursos, aguarda recomendações do Conselho Estadual de Educação. Por enquanto, seguindo recomendações da própria secretaria, os pais vêm apoiando Pedro – com grande dificuldade – no acesso a materiais e plataformas digitais públicas, sem saber se algo disso servirá para seu rendimento e créditos quando as aulas voltarem.
Ana e Pedro são personagens hipotéticos, mas exemplificam o que muitos estudantes e suas famílias têm passado, preocupadas e confusas em relação ao ano escolar. Não é à toa: cada rede de educação parece atuar como um sistema independente e desvinculado dos demais. Exatamente por isso, há um forte consenso na comunidade educacional de que a busca por soluções no enfrentamento da pandemia estaria sendo muito mais célere e eficiente se o Brasil contasse com um SNE. Além de trazer maior clareza sobre as atribuições de cada nível de governo no quebra-cabeças da educação brasileira, o Sistema garantiria a existência de instâncias para a pactuação das ações tanto a nível nacional como dentro de cada Estado.
A retomada das aulas presenciais exemplifica a miríade de definições e providências para as quais os sistemas de educação estaduais e municipais precisam trabalhar juntos. A data de reabertura das escolas e a estruturação do restante do calendário escolar é um primeiro passo; sem ele, a desconexão inviabiliza a articulação de questões como transporte dos alunos, avaliação do que aprenderam ou deixaram de aprender durante o período de isolamento, a formação de professores e o acolhimento de toda a comunidade escolar para esse momento singular na história do país. Pode-se pensar, por exemplo, em professores que dão aula tanto na escola de Ana como na de Pedro: faz sentido que esses mesmos profissionais recebam duas formações e orientações curriculares, desarticuladas ou ainda pior, conflitantes? Como isso será tratado em um momento ainda mais delicado como o da retomada das aulas, assim que as recomendações sanitárias permitirem?
A aprovação do Projeto de Lei de Conversão da Medida Provisória 934 e os pareceres do Conselho Nacional de Educação (CNE) são passos importantes para orientar as redes educacionais, mas ainda assim, não dão conta da complexidade do nosso sistema federativo – e nem deveriam. A bem da verdade, apesar das possibilidades adicionais de configuração do calendário escolar criadas pelo Projeto de Lei e das diretrizes do CNE, na falta de um mecanismo de coordenação federativa na educação cada um dos 5.570 municípios e das 27 unidades da federação deve traçar seu próprio plano para enfrentamento da crise. Com sorte, alguns estados e municípios conseguirão se organizar para trabalhar conjuntamente. É algo compreensível, haja visto a enorme complexidade do momento e a restrição de recursos técnicos e financeiros nas secretarias.
Compostas por gestores públicos da União, dos Estados e dos Municípios, as instâncias de pactuação do Sistema Nacional de Educação não só teriam legitimidade para o debate e a tomada de decisões, como a experiência de especialistas das três esferas, além da possibilidade de mobilizar recursos para uma resposta coordenada. Teria sido desenvolvida ao longo de anos uma cultura de trabalho articulado, continuado e suprapartidário. A oferta da educação em seus diferentes aspectos – diretrizes curriculares, organização e gestão de matrículas, formação de profissionais, avaliação, organização regional – se integrariam em um todo sistêmico. As redes educacionais realizariam respostas coordenadas e ganhariam eficiência nas ações; os gestores públicos buscariam e implementariam soluções para a crise de maneira conjunta. Tão importante quanto os exemplos acima, a institucionalização das instâncias do SNE evitaria a apatia flagrante do Ministério da Educação no apoio aos estados e municípios nas ações de enfrentamento à pandemia. Os pais de Pedro e Ana não teriam dúvidas sobre quando as aulas voltariam, as atividades e orientações para o ensino remoto seriam integradas e o calendário letivo seria definido conjuntamente pela Prefeitura e Governo Estadual.
Entretanto, a realidade se impõe e estudantes e suas famílias precisam de resposta. A sociedade como um todo está sendo duramente impactada pelos efeitos da pandemia e a capacidade de organização do setor público em todos os setores e níveis de governo está sendo testada diariamente. Na educação, a ausência de um Sistema Nacional de Educação impõe aos nossos estudantes e suas famílias um alto custo. Por mais que muitos gestores públicos liderem trabalhos incríveis neste momento, a estrutura de governança da educação não os ajuda.
No Congresso Nacional, uma série de projetos busca garantir recursos e organizar a oferta da educação durante a crise e na retomada das aulas presenciais. Com certeza apoiará a resposta de curto prazo do setor à crise; o avanço de pautas estruturantes, contudo, será necessário para o aprimoramento e solidificação do regime de colaboração federativa na Educação Básica. Uma delas é o Fundeb, que amplia os recursos para a Educação Básica e garante que eles sejam distribuídos às redes educacionais que mais precisam. A outra é, definitivamente, o Sistema Nacional de Educação.
A pandemia aprofundou as feridas da desigualdade que existiam no país e escancarou nossa incapacidade de articular respostas rápidas, coordenadas e efetivas na Educação Básica. Não há resposta à crise da covid-19 que não passe por melhorar a governança, a gestão e a pactuação das políticas educacionais no país. Precisamos alocar os recursos técnicos e financeiros de maneira mais justa e eficiente, priorizando o apoio aos entes federativos mais vulneráveis. À medida em que retornamos a um cenário estável, o Sistema Nacional de Educação precisa ser prioridade do Congresso Nacional e pautar um novo momento da educação brasileira. Não há outro caminho para garantir o direito à educação para todas as crianças e para a retomada do desenvolvimento econômico e social do país no cenário pós-crise. Que a situação crítica que nos encontramos sirva para aprendermos a não repetir o mesmo erro duas vezes.
*Guilherme Lacerda é economista pela Universidade de Indiana e secretário-executivo do Movimento Colabora Educação.
**Lucas Hoogerbrugge é mestre em Educação pela Universidade de Stanford e gerente de estratégia política do Todos Pela Educação.
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