Jorge Almeida*
O deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) gerou mais um quiproquó com a China. Nenhuma novidade, partindo dele, depois dos entreveros retóricos de março, se não fossem dois fatos novos: sua fala reflete uma atitude concreta do governo brasileiro que atinge diretamente a China e a reação no Congresso Nacional foi forte, incluindo um pedido para seu afastamento da presidência da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional.
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No dia 23/11, via Twitter, ele disse que o governo brasileiro teria declarado apoio a uma “aliança global” para um 5G seguro, sem espionagem da China”. No dia seguinte, ele apagou a postagem, mas não conseguiu apagar o fogo provocado.
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Ele festejava a adesão do Brasil ao programa Clean Network, do Departamento de estado dos EUA, que trata da tecnologia 5G e disse que o Brasil estaria se afastando “da tecnologia da China” e que o programa repudia iniciativas classificadas como atos de vigilância do governo chinês”, o que, de fato, confere com os objetivos do programa estadunidense .
Em outros tuítes ele atribuiu ao ministro da Economia Paulo Guedes, “alertas geopolíticos” em torno do 5G e disse que a Clean Network teria o objetivo de proteção a violações de informações privadas de empresas e cidadãos e seria um “repúdio” a entidades “inimigas da liberdade” como o Partido Comunista Chinês (PCCh).
Coincidentemente, isso ocorreu oito dias após um subsecretário do Departamento de Estado dos EUA, Keith Krach, pregar o banimento da Huawei.
A embaixada da China reagiu duramente no dia seguinte, com uma carta ao Itamaraty e 17 posts no Twitter, acusando o filho 03 do presidente da República de dar declarações “infames”, seguir os “ditames” dos EUA para “criar uma aliança internacional que discrimina a tecnologia 5G da China”, declarações “incompatíveis com o cargo de presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados”.
A Huawei, empresa chinesa que oferece o melhor e mais barato sistema de 5G do mundo e que já trabalha no Brasil com o 4G e outras ferramentas tecnológicas há cerca de 20 anos, reagiu moderadamente. O diretor global de cibersegurança da Huawei, Marcelo Motta, respondeu se dizendo “que conta com a confiança de clientes em 170 países” e que a empresa está disposta a esclarecer “rumores” e acusações sem “prova alguma”.
As reações no Brasil
A reação foi forte no Congresso Nacional, onde deputados ligados à relação Brasil-China anunciaram um pedido de afastamento de Eduardo Bolsonaro da presidência da Comissão. O pedido teve o apoio dos presidentes da Frente Parlamentar Brasil-China, Fausto Pinato (PP-SP), da Frente de Amizade Brasil-China, Daniel Almeida (PCdoB-BA) e do grupo de apoio às relações entre os países dos BRICS, Perpétua Almeida (PCdoB-AC).
Pinato, que também é presidente da Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural, declarou, em entrevista à Jovem Pan, emissora que apoia o governo Bolsonaro, que “o Parlamento brasileiro” e o povo se “cansaram das bobagens ditas pela família Bolsonaro” e que “destituir Eduardo da comissão é o mínimo que o Legislativo poderia fazer para mostrar que o Parlamento não concorda com tamanha insanidade”.
O vice presidente General Hamilton Mourão, em discurso na abertura de um evento do Conselho Empresarial Brasil-China, no dia 26, ressaltou os 20 anos de crescimento “dos vínculos entre os dois países, sustentados por complementariedade, que levou nosso agronegócio a atingir patamares incomparáveis”, citou falas do presidente chinês Xi Jinping e completou afirmando que é preciso ampliar relações e criar “oportunidades para outros setores da economia”.
O Jornal Nacional da Rede Globo apresentou a fala de Mourão, destacando que “a diplomacia entre os dois países passa por uma crise que foi criada pelo deputado Eduardo Bolsonaro e alimentada pelo ministro das relações exteriores Ernesto Araújo”.
Mas, no dia seguinte, Mourão criticou a forma da resposta da embaixada da China, que considerou “diplomaticamente errada”, pois, pelas “convenções da diplomacia, o camarada se sentindo incomodado” deveria usar os canais diplomáticos diretos com Itamaraty, e não as redes sociais. Entretanto, não deixou de criticar indiretamente o 03, ao dizer que “quando [o deputado] postou e depois apagou, acho que ele deve ter recebido orientação para apagar o post”.
O General Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria de Governo de Bolsonaro, disparou no Twitter sobre o 03: “5G -Despreparo, deslumbramento infantil, ignorância e extremismo colocam em risco os interesses do Brasil. Tem que ver o que é melhor tecnicamente para o Brasil e sua população e não entrar em disputa alheias”.
O diplomata e ex-ministro da Fazenda (governo FHC) Rubens Ricupero também se pronunciou dizendo que “governo está brincando com fogo” porque “o que salva o balanço de pagamentos e o nosso comércio externo é a China”. E o ex-embaixador do Brasil em Pequim e em Washington, Roberto Abdenur, declarou o Brasil está “metendo os pés pelas mãos” com a China.
No dia 29, após votar no segundo turno, foi a vez de Bolsonaro dizer que “Não tem problema nenhum com a China. Nós precisamos da China e a China precisa muito mais de nós”.
O andamento do leilão do 5G
Os tuítes do filho 03 ocorreram na véspera do ministro das Comunicações, Fábio Farias, confirmar o nome do relator do leilão do 5G na Anatel, que foi apresentado ao presidente Bolsonaro numa reunião com a presença do presidente do Conselho Diretor da Anatel, Leonardo Morais, e do General Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Nacional (GSI), pois o 5G é considerado uma “questão de segurança nacional”. Em março, o GSI havia definido critérios que não afastavam, a priori, a Huawei.
Farias negou discussões geopolíticas sobre a questão com Bolsonaro e disse que um eventual decreto para impedir a Huawei no Brasil extrapolava sua área. Sobre os tuítes do deputado do PSL, sugeriu ao repórter “ligar para o Eduardo”.
Acrescentou que visitará empresas europeias em dezembro e asiáticas em janeiro para conhecer melhor as propostas do mercado. Além da Huawei, as outras duas empresas que oferecem 5G são a Nokia (finlandesa) e a Ericsson (sueca).
No site do governo federal, afirmou que o processo estaria adiantado, que seria necessário cumprir os prazos da Anatel e do TCU, mas que o governo quer o leilão “o mais rápido possível”. Porém, isso é duvidoso. Em fevereiro de 2019, o presidente da Anatel prometeu o leilão até março de 2020, com o edital lançado ainda em 2019. O uso prático se iniciaria em 2021 e em 2023 já estaria adotado de modo “relevante”. Agora, o prazo para o edital é o “começo” de 2021 e o limite para o edital é “o final do primeiro semestre”.
Uma decisão sob fogo cruzado
O governo Bolsonaro vem sofrendo pressões dos EUA, especialmente do presidente Trump, que vem promovendo uma verdadeira cruzada mundial contra a Huawei e o 5G chinês, alegando estarem a serviço da espionagem política e comercial da potência asiática. Trump obteve várias vitórias, como o recuo de vários países (como o Reino Unido e a Austrália), na importação do sistema da Huawei.
Como vimos, não será uma decisão simples, que siga automaticamente a vontade de Bolsonaro e Trump (ou Biden). A Anatel, o relator e o governo brasileiro estarão sob fogo cruzado de diversos interesses contraditórios, que envolvem lobbies em favor das relações comerciais Brasil-China, especialmente o setor primário exportador (agronegócio e mineração) e os que esperam investimentos e financiamentos chineses no Brasil em diversas áreas, especialmente na infraestrutura.
Envolve as empresas do setor de telecomunicações que não priorizam discursos ideológicos e genéricas disputas geopolíticas entre EUA e China. Mas seus lucros concretos, usando um 5G de qualidade, com financiamentos e preços mais baratos.
As teles defenderam a participação da Huawei no leilão, em comunicado de 27/11, assinado pela Conexis Brasil, associação que representa as empresas do setor. Elas reclamaram que não estão sendo ouvidas, pediram transparência e diálogo com o governo e disseram que “sabem lidar com eventuais questões de segurança cibernética”.
No Estado, a questão envolve, além da Anatel e do GSI, o Congresso Nacional, as FFFA, frações diferentes do governo, pressões sobre o Tribunal de Contas da União (TCU), o judiciário etc.
O novo relator do Leilão 5G é Carlos Baigorri, servidor de carreira da Anatel desde 2009, que foi escolhido por sorteio para substituir o relator original (Vicente Aquino) que concluiu seu mandato no Conselho Diretor da Anatel e foi substituído por Baigorri, aprovado pelo senado em outubro.
Ele levantou desconfianças quando disse que o 5G “exige fornecedores confiáveis e transparentes” na “parte financeira, na governança e na estrutura societária”, pois esse é o tipo de discurso de quem defende um veto à Huawei.
Como se vê, o novo aquecimento retórico entre o Deputado Bolsonaro e a Embaixada da China, tem uma fonte de calor mais objetiva do que em março: é o deslanche do leilão do 5G.
Mas, na “Guerra Fria” entre EUA e China na corrida pela vanguarda tecnológica do capitalismo mundial, o Brasil age como um consumidor comum. Um mero expectador da disputa interimperialista entre as duas potências. Que apenas decide sobre em qual loja entrar e qual mercadoria importada comprar, sem nenhum papel na decisão sobre o que se produz. Nenhum debate sobre a superação da velha dependência econômica e tecnológica.
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* Jorge Almeida é professor Associado IV do Departamento de Ciência Política, do PPG de Ciências Sociais e do Mestrado em Ciência Política da UFBA. Desenvolve pesquisa sobre a China, tendo realizado pós-doutorado sobre o tema como Visiting Scholar na SOAS-University of London em 2018.
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