Antonio Marcelo Jackson F. da Silva*
Desde o advento do que poderíamos chamar de democracia contemporânea, de meados do século XIX para cá, em geral defende-se que as organizações políticas se dão a partir das forças econômicas dispostas no meio social. Tal paradigma se consolidou principalmente após a década de 1950 quando pesquisas demonstraram que o ímpeto do eleitor médio se dava pelos desejos mais corriqueiros de sobrevivência cotidiana. Assim, quando décadas depois o marqueteiro James Carville criou o slogan “é a economia, estúpido!” ao perceber que os estadunidenses eram muito mais preocupados com carestia, valor dos imóveis, crises econômicas de qualquer naipe ao invés de uma conquista na guerra que se travava no Golfo Pérsico, isso foi determinante na vitória de Bill Clinton para a presidência dos Estados Unidos. E, de uma forma geral também, muito pela influência da ciência política norte-americana, entendeu-se por bem aplicar o mesmo modelo em todos os países, passando-se a acreditar que as aspirações econômicas são a principal variável numa eleição ou nos apoios dados a este ou aquele líder – pouco importando aqui a maneira pela qual este se transformou em liderança.
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Todavia, os exemplos encontrados mundo afora embargam em maior ou menor grau este entendimento, visto que, é possível identificar maneiras distintas da lida política que necessariamente não encontram na economia uma variável independente; se tanto, em certos casos, o elemento “economia” até aparece com item secundário nas estruturas e funcionamento do poder, mas não como termo principal.
Assim, é razoável produzirmos o questionamento sobre quais as formas que a política pode assumir no funcionamento diário em relação à sociedade e suas instituições. Como o espaço aqui é necessariamente restrito, podemos colocar em análise exclusivamente a conjuntura brasileira e tentar entender determinados porquês que nos forneçam algumas pistas sobre o cenário em que vivemos.
Dito isto, quando observamos o Governo Bolsonaro notamos que desde a posse, em janeiro de 2019, nenhum projeto político foi apresentado: não temos a luta contra uma hiperinflação como no Governo de José Sarney, não há uma tentativa de modernização da economia como na época de Collor ou o derradeiro combate aos processos inflacionários como em Itamar Franco. Não temos uma regulamentação dos espaços privados da economia na forma como ocorreu com Fernando Henrique Cardoso e, nem mesmo, uma reorganização do Estado e políticas de distribuição de renda dos Governos Lula e Dilma. Descarto o ano e meio de Michel Temer por este ter sido muito mais uma tampa de alçapão das manobras parlamentares que derrubaram Dilma Rousseff do que propriamente um projeto de presidência.
De qualquer modo, o que se percebe desde o dia 01 de janeiro de 2019 até a presente data é uma campanha constante de Jair Messias Bolsonaro sem que qualquer proposta tenha sido apresentada para se colocar em pauta. Mesmo as reformas votadas na Câmara dos Deputados e no Senado Federal foram muito mais obras dos presidentes das respectivas casas e suas articulações do que efetivamente o resultado de manobras políticas do Presidente ou de seus ministros. Em outras palavras, num período de dois anos e meio a Presidência da República não fez nada mais nada menos do que manter um discurso de campanha unicamente voltado para seus eleitores e que pelo teor e entonação produziu sistematicamente uma crise política que resvala perigosamente na economia. Ao contrário de tudo o que estudamos até o presente momento, Bolsonaro inverte a lógica de Carville e implode os alicerces econômicos sem qualquer apreço ao custo que o país pagará com isso. Ao contrário do marqueteiro estadunidense, o brasileiro poderia dizer: “é o poder puro e simples, estúpido!”.
Contudo, que poder é esse? Toda a teoria da representação política sempre se pautou pelo princípio e pela lógica de que o representante, sendo eleito, organiza sua agenda levando em conta interesses gerais do país e procura filtrá-los com escopos ideológicos que defende. Sem sair do Brasil, podemos utilizar o exemplo de Fernando Henrique Cardoso quando da criação das agências reguladoras que definem direitos e obrigações de entes públicos e privados quanto à concessão de bens e prestação de serviços ou no Governo de Luiz Inácio Lula da Silva que, concomitantemente, permitiu a ação dos bancos privados e seu gigantesco lucro e estimulou o microcrédito nos bancos públicos, atendendo assim tanto interesses macroeconômicos e das grandes empresas quanto do microempreendedor. No primeiro caso, o argumento liberal da Presidência não se desobriga de arregimentar as ações privadas da economia e, no segundo caso, o fundamento do melhor ordenamento social se realiza na utilização de agentes econômicos públicos.
Quando observamos Bolsonaro não há qualquer percepção da existência de uma agenda, seja ela econômica ou social, quanto ao país que governa. Nem mesmo a presença de Paulo Guedes, que se pretendia ser a versão tupiniquim dos “Chicago Boys” (embrionariamente economistas chilenos formados na Universidade de Chicago e que formularam a política econômica do ditador Augusto Pinochet, no Chile), convenceu: semanas antes da posse do novo Presidente, Guedes visitou o Senado Federal e deixou boa parte dos senadores perplexos quando demonstrou sem qualquer constrangimento que desconhecia que o Orçamento da União é votado no ano anterior ao exercício. Não havia, portanto, nenhum escopo econômico para seu governo e no aspecto político, sem qualquer objetivo que não seja o poder em si, suas falas sempre foram restritas à plateia que o segue e o elegeu. Esse é o primeiro item que o distingue dos demais: Bolsonaro não tem público; tem plateia. Do público conta-se com a observação, a análise, a crítica. Da plateia espera-se o aplauso.
Sendo isto verdadeiro, como foi possível essa alteração por completo da teoria da representação política? A resposta reside talvez no mais simples dos exemplos. Em linhas gerais o eleito busca sintetizar demandas sociais pelo filtro de suas ideologias políticas e, para o bem e para o mal, passa a representar/não-representar o meio social. Explica-se. Na medida em que sintetiza os interesses pelo filtro citado há inquestionavelmente a percepção de que algo está sendo feito e que de algum modo tem vínculos com parte significativa da sociedade, ainda que inúmeras outras coisas não sejam feitas – daí representar/não-representar. Quase numa “versão atualizada” da “vontade geral” de Jean-Jacques Rousseau, a liderança contemporânea recolhe aqui e acolá elementos presentes na sociedade e os incorpora em suas políticas governamentais. Jair Bolsonaro excluiu essa lógica e, contrariando tudo o que foi pensado, traz para si todos os elementos mais espúrios que se poderia recolher no meio social a partir de suas falas e gestos. Assim, numa palestra para a comunidade judaica, o então candidato afirmou que um “afrodescendente num quilombo não servia nem para procriar, pois pesava mais de sete arrobas”. A frase absolutamente racista dita em um espaço composto de pessoas cuja identidade cultural sofreu em demasia com o racismo (a perseguição sofrida pelos judeus ao longo dos séculos) distinguia a comunidade judaica dos negros: apenas os últimos poderiam ser racialmente excluídos. Anos antes, em entrevista a uma conhecida revista masculina, afirmara que “preferia ter um filho morto em acidente do que ele ser homossexual”, assim como dissera em 2017 que sua filha “foi uma fraquejada”.
Toas as falas preconceituosas de Jair Messias Bolsonaro fazem com que os membros da sociedade que as tem como verdade encontrem nele seu fiel depositário. Em outras palavras, ao incorporar em seu discurso argumentos que são execrados por qualquer liderança política, pois por serem preconceituosos eles excluem segmentos do meio social ou invés de incluí-los, Bolsonaro traz para perto e se torna um legítimo representante de todos os que desejam de algum modo eliminar do convívio aqueles que são preconceituados por eles. Se transportarmos para a semiótica, a política tradicional tem a representação como significante e a “vontade geral rousseauniana” ou “síntese das demandas filtradas pela ideologia” como significado. Em Jair Bolsonaro, significante e significado são fundamentalmente a mesma coisa. Para o atual Presidente, representar significa defender em seu discursos e atos todos os preconceituosos que o elegeram; apenas isso. E quando tal coisa ocorre, aquele que em qualquer outro cenário estaria sub-representado ou mesmo excluído por suas opiniões não inclusivas, se sente dentro do poder como jamais viu ocorrer antes. Assim, nesse momento, transforma-se em plateia; transformando o Presidente em “mito”, pois, de fato, nunca outro representante político em momento anterior reproduziu ipsis litteris suas crenças e valores, por mais torpes que sejam.
Encantada com o “canto da sereia” racista, homofóbico, misógino, a plateia bolsonarista arca com os custos de seu líder, inclusive os econômicos. E aqui há a distinção por completa desse eleitor brasileiro – os vinte ou vinte e cinco por cento que se acredita que o atual presidente tem – com o estadunidense citado no início do texto: enquanto o segundo tem em sua vida material e econômica o mote central para o voto, o primeiro aceita qualquer prejuízo financeiro desde que seus preconceitos continuem a ser referendados pelo presidente do país. Como boa plateia, os bolsonaristas não se importam em perder o pão, pois, afinal, continuam a ter o circo.
*Antonio Marcelo Jackson F. da Silva é doutor em ciência política. e professor da Universidade Federal de Ouro Preto.
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