O texto “Duas faces do poder”[1], de autoria dos escritores Peter Bachrach e Morton S. Baratz, analisa e critica duas concepções de poder: a elitista e a pluralista, ambas focadas na dimensão visível do poder, e propõe uma nova abordagem que considera a face invisível do poder, também conhecida como “não-decisão”. A reflexão trazida no texto me pareceu importante e útil para quem acompanha a política e a tomada de decisão no Brasil, por isso decidir resenhá-lo, como uma contribuição ao debate.
Os autores discorrem sobre as origens e os fundamentos das correntes de pensamento elitistas e pluralistas, e apontam as divergências profundas existentes entre elas, especialmente em relação ao lócus do poder. A corrente elitista, de tradição sociológica, advoga que o poder é altamente concentrado em qualquer organização. Já a corrente pluralista, liderada pelos cientistas políticos, afirma que o poder é extensamente difuso. A premissa básica dos elitistas é de que em toda instituição humana há um sistema ordenado de poder, uma “estrutura de poder”, que seria parte integral e reflexo da estratificação organizacional. Os pluralistas, adeptos do poder difuso nos grupos de pressão da sociedade, por sua vez, rejeitam enfaticamente essa premissa com base em que “nada categórico pode ser assumido a respeito do poder em nenhuma comunidade”.
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Ao analisar as divergências entre as duas correntes de pensamento, os autores expõem as fortes críticas dos pluralistas aos elitistas, cuja tradição reivindica que o poder existe e deve ser provado, enquanto os pluralistas defendem que se investigue se há de fato grupos governantes. Em suas investigações, os elitistas perguntam “quem manda nesta cidade”, o que induz a uma resposta que aponta para uma “elite do poder”, na linha dos pressupostos da estratificação; já os pluralistas perguntam “há alguém que de fato manda nesta cidade?”, o que pressupõe uma investigação.
Os elitistas igualam o poder reputado ao poder efetivo; enquanto os pluralistas concentram suas atenções no exercício do poder, como o de propor, de decidir e de vetar, e não nas fontes do poder. Para os pluralistas, o poder significa “participação na tomada de decisões” e somente pode ser analisado após “exame cuidadoso de uma série de decisões concretas”. Como resultado, o pesquisador pluralista não está interessado em quem tem a reputação de poderoso, mas em: 1) selecionar para estudo uma certa quantidade de decisões políticas “chave”, em oposição às “rotineiras”; 2) identificar as pessoas que tomam parte ativa no processo de tomada de decisões; 3) obter um relato completo do seu comportamento efetivo enquanto o conflito em torno da política pública é resolvido; e 4) determinar e analisar o resultado específico do conflito.
São três as principais críticas dos pluralistas aos elitistas: a primeiro é à afirmação de que existe uma estrutura de poder em qualquer organização. A segunda é de que essa estrutura de poder tende a ser estável a longo prazo. E a terceira é à postulação que equipara poder reputado a poder efetivo. Os autores reconhecem que os pluralistas expuseram as principais fraquezas do modelo elitista, mas atribuem aos pluralistas dois defeitos. O primeiro é de que o modelo deles não leva em consideração o fato de que o poder pode ser, e, frequentemente, é exercido com restrição do escopo da tomada de decisão a temas relativamente “seguros”. O outro é de que o modelo não fornece critérios objetivos para distinguir entre temas “importantes” e “desimportantes”, que surgem na arena política.
Os autores, entretanto, não se limitam em seu texto a reproduzir as críticas dos pluralistas aos elitistas. Pelo contrário, além de criticar as duas correntes, apresentam seu próprio modelo de análise. Eles concordam com as críticas dos pluralistas aos elitistas, mas entendem que, tal como os elitistas, os pluralistas adotam abordagens e pressuposições que predeterminam suas conclusões. A tese central dos autores é de que existem duas faces de poder, a visível e a invisível, porém os sociólogos não veem nenhuma delas e os cientistas políticos veem apenas a primeira delas, a face visível do poder.
A face invisível, que os autores afirmam que nem pluralistas nem elitistas veem, consiste na capacidade que indivíduos ou grupos têm de controlar ou manipular os valores sociais e políticos (isto é, de “mobilizar vieses”), impedindo que temas potencialmente perigosos para seus interesses e perspectivas sejam objeto de discussão e deliberação pública. Esses atores políticos podem usar recursos políticos para controlar a agenda de decisões, limitar o escopo do processo decisório a questões secundárias e viáveis e impedir o surgimento de conflito acerca de questões que poderiam prejudicar seus interesses. É o que os autores denominam de não-decisão.
Portanto, ao propor seu próprio modelo, os autores recomendam uma abordagem renovada para o estudo do poder, que considere não apenas a face visível, mas também a face invisível do poder. Sugerem, por exemplo, que além de analisar os valores dominantes, os mitos, os procedimentos políticos e as regras estabelecidas do jogo, os pesquisadores façam uma cuidadosa investigação sobre quais pessoas ou grupos, se algum, ganha com o viés existente e quais, se algum, é prejudicado por ele. Em seguida, ele poderia investigar a dinâmica da não tomada de decisões; ou seja, examinar em que medida e de que maneira o status quo que orientou pessoas e grupos influencia os valores dessa comunidade e dessas instituições políticas. Sugerem que os pesquisadores poderiam começar não como fazem os elitistas (sociólogos) que perguntam “Quem domina” nem como fazem os pluralistas (cientistas políticos), que perguntam “alguém tem poder”, mas investigando a “mobilização de viés” particular da instituição sob escrutínio. Finalmente, usando seu conhecimento da face restritiva do poder como um fundamento para a análise e como um padrão para distinguir entre decisões políticas “chave” e “rotineiras”, o pesquisador analisaria, à maneira dos pluralistas, a participação na tomada de decisões de temas concretos.
Ainda sobre a face invisível do poder, indagam os autores: “pode uma sólida concepção de poder basear-se no pressuposto de que o poder é totalmente incluído e completamente refletido em “decisões concretas” ou em atividades relacionadas diretamente à tomada de decisões? Concluem afirmando que não. Para ilustrar o que afirmam, dão o seguinte exemplo: é claro que o poder é exercido quando A participa da tomada de decisões que afeta B. Mas o poder também é exercido quando A devota suas energias na criação ou no reforço de valores sociais e políticos e de práticas institucionais que limitam o escopo do processo político submetido à consideração pública de apenas aqueles temas que são comparativamente inócuos para A. Na medida em que A obtém sucesso em fazer isso, impede-se que B, para todos os propósitos práticos, leve a público quaisquer temas que possam em sua decisão ser seriamente prejudiciais para o conjunto de preferências de A. Se um indivíduo ou um grupo – consciente ou inconscientemente – cria ou reforça barreiras para a aparição pública de conflitos em políticas públicas, esse indivíduo ou grupo tem poder. Ou como o professor Schattschneider[2] disse: “Todas as formas de organização política têm viés a favor da exploração de alguns tipos de conflitos e da supressão de outros, pois organização é mobilização de viés”[3]. Alguns temas são organizados no interior da política, enquanto outros são organizados fora.
Os autores, numa clara crítica às correntes elitistas e pluralistas, indagam: pode o pesquisador negligenciar a possibilidade de que alguma pessoa ou associação poderia limitar a tomada de decisões a matérias relativamente não controversas, ao influenciar os valores da comunidade e os procedimentos e rituais políticos, não obstante haver na comunidade conflitos de poder sérios, mas latentes? E concluem afirmando que “fazê-lo é negligenciar a menos evidente, mas, no entanto, extremamente importante face do poder”. Em síntese, os autores criticam elitistas e pluralistas por não incluírem em suas análises a influência invisível ou o poder da “não-decisão”.
As questões examinadas por Bachrach e Baratz são particularmente críticas no contexto brasileiro, em que o exercício do poder de veto por grupos de interesse, expressão clássica do pluralismo, acaba, numa sociedade profundamente marcada por traços elitistas, produzindo situações de não-decisão, prejudicando a regulamentação e implementação de direitos sociais, ou levando a soluções insuficientes, no campo das políticas públicas. Nesse contexto, identificar as verdadeiras fontes do poder, e como ele é exercido, mostra-se um grande desafio.
(*) Jornalista, mestre em Políticas Públicas e Governo (FGV), consultor e analista político em Brasília. Foi diretor de Documentação do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) e é socio das empresas “Queiroz Assessoria em Relações Institucionais e Governamentais” e “Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas”.
[1] Disponível em: https://revistas.ufpr.br/rsp/article/view/31718/20239
[2] Elmer Eric Schattschneider – cientista político americano.
[3] Schattschneider, E.E. The Semi-Sovereign People. New York: Winston, 1960, apud Capella, A. C. N. Formulação de Políticas. Brasília: Enap, 2018, p. 16.
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