Nos anos de evolução doutrinária, as ciências jurídicas puderam cristalizar variadas categorias de responsabilidade, nos seus mais variados ramos de conhecimento. A mais conhecida e mais indutiva delas é a responsabilidade subjetiva – única admitida no âmbito criminal – em que se exige para sua configuração a presença do dolo (simplificadamente, consciência e vontade) ou da culpa (negligência, imprudência ou imperícia). Trata-se de tipo primário de responsabilização individual, por fatos próprios, intuído por qualquer criança que, ao ver o vaso quebrado após o arremesso de uma bola, defende-se alegando: “Foi sem querer”.
Não é o único tipo de responsabilização conhecido nas searas jurídicas. No âmbito civil, é bastante estruturada a responsabilidade por atos de terceiro, decorrentes do dever de guarda ou de seleção dos delegados para determinada atividade, entre outros. Há, por fim, a responsabilidade objetiva, o tipo mais gravoso de responsabilidade, relegada à proteção dos bens mais preciosos frente a atividade de risco inato. Nesse tipo de responsabilidade, não se exige culpa ou dolo ou qualquer elemento subjetivo dos agentes. Basta a constatação de um nexo de causalidade entre o evento danoso ou perigoso e a atividade do agente.
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Esse apanhado de responsabilidades, contudo, encerra-se no âmbito jurídico. Existe ainda uma outra camada, menos compreendida, que é a da responsabilidade política. Aqui não se trata apenas de ações próprias ou de terceiros. Trata-se de categoria mais flexível, mas até mesmo mais rigorosa do que a própria responsabilização objetiva. No âmbito político, o mandatário deve ter a consciência de que, para além de seu papel de gestor, exerce também um papel simbólico, de parâmetro de comportamento que terá reflexos na sociedade. Obviamente, quanto mais alto o cargo do mandatário, maior sua responsabilidade por suas ações, palavras e exemplos, no âmbito político.
Suas condutas comunicam à nação um juízo de valor. Naturalmente, uma miríade de fatores subjetivos e sociais de cada indivíduo responderá pela filtragem dessas informações. Mas muitos serão permeáveis a ela. São condutas que geram consequências e, portanto, responsabilidades.
No último mês, o Brasil se viu atravessado por duas tragédias, nas quais é possível notar com clareza esse reflexo. Genivaldo dos Santos foi assassinado por policiais rodoviários federais após ser abordado dirigindo uma motocicleta sem capacete, prática recorrentemente alardeada pelo presidente da República e por alguns de seus ministros. Segundo a Polícia Federal, a cruel morte de Dom Philips e Bruno Pereira teria sido decorrência de suas ações em relação à pesca ilegal, conduta pela qual o presidente da República já foi condenado.
Há tantas outras mensagens do mandatário maior da nação que irradiam nessas tragédias. A apologia à violência policial, materializada sutilmente em tentativas de alteração legislativa que aumentam as hipóteses de legítima defesa policial a ponto de se tornarem salvo-condutos para o homicídio. A apologia à tortura (“eu sou a favor da tortura”). As ações para enfraquecimento de agências ambientais fiscalizadoras e seus agentes e caracterização de suas atividades regulares como “festa das multas”. O recorrente ataque a ativistas e a ONGs, principalmente aquelas com atuação da Amazônia, que já foram comparadas pelo presidente a um câncer que não se consegue matar.
Quando confrontados, os agentes do governo rapidamente recorrem – pueril, mas eficazmente – à responsabilidade subjetiva. Frases como “o que eu tenho a ver com isso?”, “não sou coveiro”, “uma fatalidade”, “fatos isolados de agentes”, “não podemos generalizar”, desnudam a facilidade com que procuram se eximir, norteando a discussão apenas na responsabilização imediata e ignorando toda a responsabilidade política que recai na figura dos mandatários de cargos públicos, principalmente os eletivos.
Existem razões para isso. Quando o Poder Judiciário se deixou seduzir pela cada vez mais agressiva intervenção nas ações do Poder Executivo, reduziu a responsabilização dos agentes públicos ao campo jurídico, eclipsando a importante e fundamental arena política. Faz assim vigorar a mentalidade de que se o comportamento do agente público não é ilícito, ele deve ser tolerado; e não há nada mais equivocado do que isso. É esse fenômeno um dos principais responsáveis pela crise institucional brasileira, já que se acostumou a esperar do Poder Judiciário por respostas estatais. Mas no campo da responsabilidade política, pouco ou nada pode fazer.
É preciso recriar o sentimento vigilância da sociedade para com os valores éticos minimamente aceitáveis de nossos mandatários. Em países culturalmente mais desenvolvidos, meros gestos fazem cair gabinetes e governos inteiros. No Brasil atual, nem mesmo a defesa declarada do ilícito tem maiores consequências para seus agentes, muito por conta da utilização da estratégia acima mencionada. Deve-se, portanto, despertar. Enquanto não for compreendido o tipo de responsabilidade que esse governo possui nos assassinatos de Genivaldo, Dom Philips e Bruno Pereira e tantos outros, o futuro político brasileiro continuará caminhando em um vale sombrio e desolado.
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