Luiz Alberto dos Santos *
A eventual aprovação do projeto de lei que reajusta o subsídio dos ministros do STF, em fase de apreciação pelo Senado e que atingirá toda a magistratura nacional, e, ainda, os servidores afetados pelo atual teto remuneratório no serviço público, nos três níveis de governo, mas em especial na esfera federal, suscita um debate oportuno e necessário sobre a extensão dos limites e autorizações contidas na Lei de Diretrizes Orçamentárias para fins de inclusão de despesas com pessoal na Lei Orçamentária Anual e sua execução.
Dado que o tema está sendo abordado sob a perspectiva fiscalista, considerando a crise fiscal que determina um forte ajuste nas contas públicas, e que há mais de 13 milhões de desempregados, os meios de comunicação, os diversos setores da opinião pública e até mesmo parcela dos membros do Congresso Nacional examinam o tema como mais uma manifestação de “irresponsabilidade fiscal”, “imoralidade” ou “privilégio”.
No entanto, trata-se de um direito que, assim como para todos os servidores públicos, a Constituição assegura também aos magistrados, cuja remuneração, por ser paga pelo Tesouro, não pode ser vista como algo insuportável pela sociedade, ou iníquo, apenas por se tratar (no caso do STF) do valor que é o “teto” de remuneração para os servidores, ou porque haja efeitos “dominó” em toda a magistratura nacional e no Ministério Público e Tribunal de Contas da União. É certo que tais vinculações, amparadas pela Constituição, poderiam ser revistas, ou mesmo eliminadas, mas esse é um juízo que cabe ao Congresso, que, inclusive, já examina proposições nessa direção.
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Uma vez aprovado, o montante da despesa decorrente do reajuste de 16,38% sobre o atual valor de R$ 33.763, 00, que vigora desde janeiro de 2015, deverá ser incorporado à Lei Orçamentária anual, seja a de 2018, seja a de 2019. Não se aplicam, ao projeto de lei em questão, as limitações da Lei Eleitoral, vez que encaminhado ao Congresso ainda em 2015, e cuja sanção, se aprovado, decorrerá da própria Constituição, não se concretizando ato discricionário do chefe do poder Executivo ou do presidente do Congresso Nacional que possa ser impedido por lei.
Na verdade, o projeto de lei prevê vigência imediata do valor fixado e, até mesmo, retroativa, posto que remete a sua aplicação a 1º de junho de 2016 e a 1º de junho de 2017, quando entrariam em vigor os valores nele estabelecidos. O texto aprovado pela Câmara dos Deputados e sob exame do Senado, porém, estipula que a sua implementação observe o art. 169 da Constituição Federal.
PublicidadeA Carta Magna prevê, expressamente, no seu art. 37, X, a revisão geral anual, e como tal comando é impositivo quanto à temporalidade e significado (reposição de perdas inflacionárias, como expresso pelo STF na ADI por Omissão 2.061) ele não comporta limites formais estabelecidos por lei. E, ademais, esse comando deve ser interpretado em conjunto com o art. 169 da Constituição.
Ao encaminhar ao Congresso o Projeto de Lei 2.646 o Supremo Tribunal Federal assim justificou a medida:
“O Projeto de Lei ora submetido à apreciação das Casas do Congresso Nacional tem o objetivo de recompor os valores dos subsídios dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, com respaldo no inciso X, do artigo 37, da Constituição Federal, que exige lei específica para tratar da matéria em comento:
‘Art. 37 ……………………………………………………………………………………. .
X – a remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o § 4º do art. 39 somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, assegurada revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices.’
Esse Projeto de Lei fixa o subsídio de Ministro do Supremo Tribunal Federal em R$ 39.293.38 (trinta e nove mil, duzentos e noventa e três reais e trinta e oito centavos), a partir de 1 º de janeiro de 2016, com base no inciso XV do art. 48 da Constituição Federal.
O valor de R$ 39.293.38 é resultante da aplicação do percentual de 16,38% sobre R$ 33.763,00 – valor do subsídio atual previsto no art. 1° da Lei nº 13.091, de 12 de janeiro de 2015.”
Assim, por se tratar de reajuste destinado a efetivar mera reposição inflacionária, o art. 37, X prevalece sobre o art. 169, § 1º, II, que diz:
“Art. 169. A despesa com pessoal ativo e inativo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios não poderá exceder os limites estabelecidos em lei complementar.
§ 1º A concessão de qualquer vantagem ou aumento de remuneração, a criação de cargos, empregos e funções ou alteração de estrutura de carreiras, bem como a admissão ou contratação de pessoal, a qualquer título, pelos órgãos e entidades da administração direta ou indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo poder público, só poderão ser feitas: (Renumerado do parágrafo único, pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
I – se houver prévia dotação orçamentária suficiente para atender às projeções de despesa de pessoal e aos acréscimos dela decorrentes; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
II – se houver autorização específica na lei de diretrizes orçamentárias, ressalvadas as empresas públicas e as sociedades de economia mista. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)”
A LDO para 2019, contudo, não contempla qualquer espécie de autorização para reajustes no seu art. 101, diferindo drasticamente do que previam as LDO editadas entre 2000 e 2017 (após a vigência da EC 19/98).
Até então, no entanto, houve uma preocupação do legislador em ajustar a LDO ao teor da Lei de Responsabilidade Fiscal e estabelecer amarrações e limitações para dificultar ou mesmo impedir a concessão de reajustes, mas em nenhum momento deixou de ser autorizada expressamente a inclusão da despesa decorrente da revisão geral, ou de leis em tramitação no Congresso, ou por ele aprovadas. Desde 2000, a Lei de Diretrizes Orçamentárias vem sendo ampliada no que se refere às regras sobre reajustes, ora fixando limites que a Constituição não prevê, para impedir a tramitação de proposições legislativas ou a inclusão de seus efeitos na LOA, ora para tornar mais dificultosa a sua apreciação, e, até mesmo, para limitar os seus efeitos financeiros e sua vigência.
Quanto a esses aspectos, evidencia-se a tendência a que a LDO acabe por se tornar uma “Lei de Diretrizes para a Execução Orçamentária”, interferindo na própria governança e gestão públicas, e não para a elaboração da Lei Orçamentária, a fixação de metas e prioridades, como prevê o art. 165, § 2º, da Constituição , ou de metas de resultado fiscal (art. 166, § 17), de limites de gastos para Poderes e órgãos (e.g. art. 99, § 5º, 127, § 5º, 134, § 2º), ou de autorizações para determinadas despesas, (art. 169, § 1º, II) e, assim, extrapolando o sentido que a Carta Magna deu a essa importante peça legislativa.
Note-se que até mesmo a LRF, em seu art. 22, I, assegura a excepcionalização da revisão geral anual das medidas a serem adotadas para cumprimento do limite de despesa com pessoal estabelecido nos seus art. 19 e 20.
Mesmo a EC 95/2016, que institui o novo regime fiscal, inseriu no art. 109, § 3º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitória – ADCT a previsão de que apenas no caso de descumprimento de qualquer dos limites individualizados de que trata o caput do art. 107 fica vedada a concessão da revisão geral prevista no inciso X do caput do art. 37 da Constituição Federal. Ou seja, não havendo tal descumprimento, fica assegurada a revisão geral.
É claro que, numa situação dessa natureza, a mera omissão não pode prejudicar a Constituição, sendo nitidamente o caso de lei inconstitucional por omissão. O fato de, em inúmeros momentos desde 1998, o art. 37, X ter sido descumprido (e, em alguns casos, com o aval leniente do próprio STF, ao desconsiderar que a Lei nº 10.331, de 2001, não é autoaplicável, embora discipline a revisão geral anual) não pode servir de pretexto a essa continuada e grave omissão, que submete os subsídios dos membros do STF a uma defasagem de, no mínimo, 34,23%.
Se tomarmos como base para a recomposição o valor do subsídio fixado em 2005, quando foi implementado o teto com base no subsídio dos ministros do STF (R$ 21.500,00), o seu valor atualizado pelo IPCA seria, em julho de 2018, de R$ 45.360,00 e não os atuais R$ 33.763,00. Se tomarmos como base o valor fixado em janeiro de 2006, o reajuste da inflação elevaria esse valor para R$ 48.906,00. Há muitas formas de efetuar esse cálculo, mas os números demonstram que os atuais valores estão defasados em face da necessidade de preservação do valor real do subsídio, e o uso de artifícios como o auxílio-moradia (que não é pago aos ministros do STF) demonstra que não se deve brincar com assuntos dessa ordem.
Contudo, a LDO para 2019 (Lei nº 13.707, de 14 de agosto de 2018) é omissa, no seu art. 101, o qual apenas prevê regras para disciplinar o aumento de despesa decorrente de situações não previstas como de execução obrigatória, tais como a criação e provimento de cargos, contratação de temporários e outras equivalentes.
Vale lembrar que, na tramitação do PLDO 2019, houve alterações profundas promovidas pelo relator, que suprimiu todos os dispositivos constantes da proposta original, que permitiam, como em anos anteriores, a inclusão da despesa com reajuste e mesmo da revisão geral, na LOA 2019, e incluiu, ainda, um novo artigo para vedar expressamente todo e qualquer reajuste em 2019.
Essa segunda regra foi rejeitada pelo Congresso, mas não foram restabelecidos os dispositivos que autorizavam expressamente a inclusão na LOA 2019 de despesas com reajustes, como necessário para espancar dúvidas. Sequer a regra que asseguraria os efeitos da revisão geral anual prevista na Constituição foi restabelecida.
Ao colocar o “bode na sala”, o relator, de forma que pode ser classificada como “esperteza” legislativa, gerou um contrassenso, pois torna obrigatória ou a revisão da LDO (o que depende de projeto de lei de iniciativa do Chefe do Executivo) ou a declaração de inconstitucionalidade por omissão pelo Supremo Tribunal Federal, que, assim, poderia suprir a lacuna determinando, até que o Executivo submeta novo PL ao Congresso, a aplicação da regra da LDO 2018, a qual, porém, expressamente veda a aplicação de reajustes com efeitos retroativos, ou seja, os efeitos financeiros dar-se-iam apenas a partir da data da vigência da Lei e da existência de dotação orçamentária suficiente.
Ademais, se aprovado pelo Senado o PL que reajusta os subsídios dos ministros do STF ainda em 2018, ele estará submetido não à LDO para 2019, mas à LDO 2018, e isso, salvo melhor juízo, afastaria qualquer óbice de inconstitucionalidade, não fosse o fato de que se trata de reajuste a ser concedido a título de “revisão geral” (devendo, evidentemente, ser considerado o efeito que essa revisão deve ter para o conjunto dos servidores, à luz do art. 37, X).
Assim, está na hora de o STF cumprir o seu papel constitucional e, caso provocado por autores legitimados, “botar o guizo no pescoço do gato” e fazer valer a Carta Magna. Caso contrário, deverá resignar-se a um congelamento dos subsídios de seus membros, cujas consequências estão longe de ser benéficas ao conjunto da sociedade brasileira e à magistratura nacional.
* Luiz Alberto dos Santos é advogado, mestre em Administração e doutor em Ciências Sociais. Consultor Legislativo do Senado Federal e professor colaborador da EBAPE/FGV e ENAP. Ex-Subchefe de Análise e Acompanhamento de Políticas Governamentais da Casa Civil (2003-2014).
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