Por Ana Paula Barreto*
Com todo o meu afeto para minha irmã Carolina, minha mãe Zoê, Tia Sônia e Zezé
Estou eu, sentada no sofá ao lado de minha mãe, em “visita” à minha terra natal Florianópolis, enquanto toca na playlist do celular “Andança” – numa versão repaginada com Diogo Nogueira do hit que embalou a geração dela. Estamos ali a ouvir a música “mareadas”, depois de uma semana sofrida onde assistimos aos tratamentos diversos e a luta de minha irmã caçula no combate a um câncer implacável, quando minha mãe saca do seu baú de histórias o dia em que ela e minhas tias quase foram presas por cantar em alto e estridente falsete Andança, lá pelos idos da década de 80.
Minha mãe diz que a cantoria começou ainda à tarde, quando ela, suas irmãs e uma prima querida, se reuniram para comemorar a chegada de um eletrodoméstico revolucionário: a máquina de lavar roupas. Zoê, minha mãe, tinha adquirido a “preciosidade” em diversas prestações, foi a primeira daquela leva da família a possuir algo assim. Senhora que era do “seu dinheiro”, por mais “casada” que fosse com meu pai, se deu ao “luxo” de comprar esse artigo que hoje consideramos de primeiríssima necessidade, graças ao salário como servidora pública. Ela sempre nos dizia (somos três filhas paridas por ela) como um conselho que não se pede, mas se dá: o marido de vocês é o emprego de vocês!
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O mais fantástico da narrativa de minha mãe ao contar a história enquanto escutávamos Andança era ela dizer que cestos e cestos de roupa foram lavados do meio da tarde até a madrugada, pois eram peças de quatro famílias que antes eram todas esfregadas à mão por essas mulheres. Todas trabalhavam dentro e fora de casa, todas tinham filhos pequenos, todas tinham uma rotina exaustiva pouco compartilhada, sequer dividida com seus companheiros. Então, tomar posse de uma máquina de lavar roupas era algo potente mesmo, empoderador, libertário, onde o gozo delas todas se dava a cada abertura da tampa da máquina e a constatação de que as roupas realmente saíam limpas, sem praticamente nenhum esforço físico. Era um orgasmo feminino coletivo ver que em pouco menos de uma hora, meias, calcinhas, camisetas, vestidos e até as cuecas “deles” estavam lavadas, cheirosas, prontinhas para serem estendidas no varal.
E nesse vai e vem de gozo regado a sabão em pó, elas formavam coro na cantoria oferecida por meu pai em seu violão, algo que pernoitava os finais de semana onde eles, os maridos, se reuniam para tomar uma cerveja e comer um boa comida – preparada por elas, obviamente – enquanto as crianças brincavam na sala do apartamento. Mas neste dia em especial, as vozes que se ouviam em decibéis potentíssimos eram as delas e a música escolhida era Andança. E era tanto “me leva amor” – enquanto as cuecas e calcinhas se roçavam na máquina de lavar – e “por onde for quero ser seu par”, em meio aos pares de meias mergulhados na espuma, que a melodia se espalhou pelos andares do edifício. Aí é que a confusão se deu…
Toca a campainha, abafada por mais um verso de Andança, quando ao abrir a porta aparece o síndico (que tristeza, não era Tim Maia) argumentado que o som estava alto demais, que já passava das 10 da noite, que era necessário cessar o festerê. Meu pai, apesar de trôpego pela cerveja, pousou de apaziguador, enquanto elas berravam felizes “vou, não faço tréguas, sou mesmo assim…”. E com raiva o síndico foi se exaltando, outros vizinhos chegando, e minha mãe só pensando se não era estratégico apresentar a máquina de lavar para as vizinhas que também em sua porta aportaram. Afinal, era justo compartilhar com elas todas as “andanças” que o feminismo dá, não é mesmo?
A cantoria não cessou, a máquina não parou, mas a polícia chegou… Agora era explicar ao delegado que mal tinha em comemorar efusivamente o relaxamento da “prisão no semiaberto”, já que a máquina de lavar oferecia a elas, prisioneiras da rotina diária dos afazeres domésticos, algumas horas de “pernas pro ar” e livre cantar.
*Ana Paula Barreto é jornalista formada pela Universidade Federal de Santa Catarina, filha da Dona Zoê, irmã das educadoras Luciana e Carolina, e mãe da Catarina.
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