Passados dez meses desde o início da invasão da Ucrânia pelas tropas russas, o conflito russo-ucraniano consolida-se gradualmente como uma guerra de atrito cujo objetivo maior dos beligerantes é o de alcançar o desgaste total do inimigo em todas as suas dimensões (moral, física e infraestrutural). Dessa forma, a perspectiva de prolongamento do conflito e as várias facetas de seus efeitos colaterais apresentam-se como o pano de fundo para a política internacional neste ano que está apenas começando.
Desglobalização econômica ou novas estratégias de autossuficiência?
Nos Estados Unidos, a celebração do Novo Nafta (ou USMCA) e, na sequência, a pandemia do novo coronavírus já haviam reforçado a ideia de que empresas e empregos na China deveriam retornar ao país. Nesse sentido, a administração Biden-Harris implementou uma agenda “pós-neoliberal” em favor de uma política industrial com investimentos públicos robustos em energia limpa; de recuperação do poder aquisitivo dos salários; e de combate à evasão fiscal. Nesse contexto, o conflito russo-ucraniano potencializou, ainda mais, a ideia de tornar o país cada vez mais autossuficiente em setores estratégicos tanto sob a perspectiva econômica quanto de segurança nacional, estendendo suas preocupações às cadeias globais de produção de energia.
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Assim, as relações EUA-China-União Europeia parecem caminhar para uma gradual deterioração na medida em que os Estados Unidos e União Europeia avançam suas respectivas agendas de restrições ao investimento e comércio com a China. Essa tendência tem encontrado respaldo político nos dois lados do Atlântico e vem se materializando em legislações que muitas vezes fazem referências às suas respectivas agendas de segurança nacional que veem riscos no acesso de tecnologias sensíveis por parte do governo chinês. Nesse sentido, leis restritivas de exportações implementadas pelos Estados Unidos e seus aliados contra o acesso chinês a insumos da cadeia produtiva de semicondutores apresentam-se, por exemplo, como elementos que dificultam a maior integração econômica e produtiva dessas importantes regiões do planeta.
Frente a isso, espera-se o recrudescimento do movimento chinês no sentido de reorientar suas correntes de comércio e investimento buscando o desacoplamento gradual e constante de suas cadeias de valores com esses países para se tornar cada vez mais autodependentes em setores estratégicos como é o caso da mencionada indústria de semicondutores que ocorre no âmbito das três dimensões da guerra comercial entre China e EUA. Da mesma forma, a China pode priorizar novas parcerias estratégicas cujo objetivo seja o de buscar alternativas à utilização do dólar como moeda corrente em suas transações econômicas bilaterais.
No Sul Global…
Em meio à consolidação da lenta e gradual multipolaridade do sistema internacional onde Estados Unidos, União Europeia, China e Rússia apresentam-se como principais atores, o ano de 2023 também será marcado pela atuação de países como Brasil, Turquia, Arábia Saudita e Índia.
A pressão do Ocidente sobre Índia por um posicionamento mais assertivo no sentido de condenar a invasão da Ucrânia pela Rússia acontece ao mesmo tempo em que o país se beneficia de condições favoráveis ao acesso às fontes de energia russas. Da mesma forma, essa pressão vem do Quadrilateral Security Dialogue (QSD), ou Quad – fórum de diálogo estratégico de segurança entre Austrália, Índia, Japão e Estados Unidos, que fortalece o posicionamento indiano frente às suas preocupações de segurança em relação à presença chinesa na região. Por fim, vale ressaltar que o próximo encontro do G20 acontecerá em setembro de 2023, na Índia, onde o país anfitrião terá a missão de conduzir discussões importantes para a agenda internacional.
Já a chegada de Lula ao seu terceiro mandato como presidente eleito democraticamente representará o retorno da tradicional política externa brasileira independente onde se prioriza as relações com os países centrais do mundo capitalista, bem como uma ampla agenda de interesses comuns com os países do Sul Global. Assim, espera-se uma presença marcante do Brasil nos fóruns de governança multilaterais tradicionais e em diversos fóruns como Brics, Unasul, Mercosul, IBAS, etc. Destarte, nesse contexto de construção de consensos multilaterais, no seu entorno de influência regional mais próximo, a política externa do governo Lula terá a difícil tarefa de empreender esforços para a reconstrução da Unasul e a coexistência junto aos EUA. À vista disso, em meio a uma agenda internacional repleta de desafios, o posicionamento brasileiro frente ao conflito russo-ucraniano se apresentará como um dos primeiros testes para a agenda internacional do Brasil em 2023.
Do mesmo modo, os desdobramentos da guerra na Ucrânia também lançaram luz sobre Arábia Saudita e Turquia. A Turquia tornou-se importante para a adesão da Finlândia e da Suécia à OTAN. Até o momento, República Checa, Grécia, Hungria, Portugal, Eslováquia, Espanha e Turquia precisam formalizar seus respectivos apoios à entrada dos dois países nórdicos à aliança transatlântica. Tudo isso acontece ao mesmo tempo em que Ancara mantém seu fornecimento de drones ao governo ucraniano, intermedeia acordo para o escoamento de grãos junto ao governo russo e se opõe a algumas sanções econômicas ocidentais direcionadas à Rússia. Já a Arábia Saudita tem tido papel central na condução do posicionamento da Opep frente aos efeitos colaterais do conflito sobre a produção e os preços do petróleo no mercado internacional bem como sobre toda a cadeia de produção de energia.
Por fim vale lembrar que outras tendências não menos importantes deverão ser observadas de perto como, por exemplo, a deterioração do poder relativo norte-americano no sentido de pautar a abrangente agenda global que envolve temas como os desdobramentos da guerra na Ucrânia, a questões taiwanesa e palestina, e as demais tensões nos Balcãs, África, Oriente Médio e Ásia Central. Da mesma forma, o poder estrutural dos Estados Unidos, que há muito tempo molda a estrutura produtiva, financeira, de conhecimento e de segurança do sistema internacional, sobre a qual os demais países operam e se relacionam, vem sendo paulatinamente desafiada pela China e pela Rússia e contestada por uma série de países do Sul Global.
Essa dinâmica de desafios e contestações (reconhecida pelos Estados Unidos) contribui para o fortalecimento lento e gradual de outros polos de poder no sistema internacional ainda que continue existindo uma projeção maior de poder por parte de um ou outro país no âmbito das relações internacionais. Assim, como a disputa de poder é um jogo de soma zero, a deterioração, em algum grau ou dimensão, do poder americano favorece a consolidação da multipolaridade.
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