Luiz Henrique Antunes Alochio*
“Ai de ti, saneamento básico, porque eu já fiz o sinal bem claro de que é chegada a véspera de teu dia, e tu não viste.”
Peço licença para, usando como mote a crônica do conterrâneo Rubem Braga e substituindo Copacabana por saneamento, chamar atenção para os argumentos que seguem, a respeito de um assunto que vem tirando o sossego, e em longo prazo a saúde, da população fluminense.
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Rubem que nos une, os capixabas, especialmente os cachoeirenses, ao Rio. Rio de Janeiro que tem enfrentado severas dificuldades, em se tratando de saneamento básico.
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Recentemente, a imprensa destacou o caso da Cedae: “crise da água” ou “crise hídrica afeta a Cedae”. É preciso ir mais fundo. Precisamos tocar no cerne da ferida. E isso exige a reinserção dos municípios e, especialmente, a participação da iniciativa privada no setor. Oh, Saneamento! “Foste iníquo perante os municípios, e municípios mandarão sobre ti a multidão de seus problemas”.
Buscando um histórico das Companhias Estaduais de Saneamento, veremos que foram impostas como substituição aos sistemas municipais. Os municípios que não “optassem” por conceder “voluntariamente” os serviços às Companhias Estaduais não teriam, por exemplo, acesso a verbas federais para o setor. Foram levados a tais delegações por sufocamento financeiro.
Depois de 50 anos, falar em municipalização do saneamento é praticamente um assombro, pois se assentou no pensamento nacional uma falácia: a competência estadual. Não! A competência é local. Desculpe-me, STF! O saneamento é o mais clássico dos serviços das cidades. O Brasil, que possui municípios como partícipes da Federação, seguiu exatamente na contramão do resto do mundo, mesmo dos países nos quais os municípios não passam de simples “autarquias” estaduais.
Ai de ti, Saneamento! Para salvar as Companhias Estaduais, vimos de tudo. As taxas (dos serviços compulsórios, específicos e divisíveis de água e de esgoto) viraram tarifas, pois os Tribunais descobriram que — pasmem! — sequer previsão em lei havia para as cobranças, todas fixadas por atos infralegais.
Nunca sujeitaram as Companhias Estaduais a uma disputa justa mediante licitação. Por isso sequer devem ser consideradas “concessões” clássicas, mas, sim, meras “delegações”. Jamais houve a fixação sequer de uma “taxa/tarifa de outorga” do serviço, ficando os municípios sem nem mesmo uma mínima participação financeira nos ganhos, ainda que fosse para investimento na fiscalização ambiental, tão necessária ao próprio saneamento.
Não importam aqui mágoas do passado, especialmente a omissão dos municípios, que jamais brigaram por sua competência. Nem cabe questionar se a posição de alguém é a favor ou contra o saneamento público. A verdade é que “grandes foram as vaidades […] e profundas as mazelas”.
Os serviços de saneamento básico, especialmente água e esgoto, não irão atender a população, sem que sejam inseridos seriamente nos debates os municípios e sem que esses arremedos de “delegação” sejam convertidos em verdadeiras “concessões”, com ampla disputa em licitação.
Parafraseei múltiplas vezes o conterrâneo Rubem Braga, nos trechos desse artigo, pois Cachoeiro de Itapemirim, cidade onde Rubem nasceu, tem, humildemente, algo a contribuir. Foi o primeiro município do Brasil a realizar uma concessão de água e esgoto, com plena licitação, criando agência reguladora independente. Hoje, seguramente, está anos luz de evolução à frente do que existia antes da concessão e do ingresso de investimentos privados.
“Canta a tua última canção, saneamento básico sem licitação!” É chegada a hora da plena accountability. Caso contrário, em vez de “badejos e garoupas nos fossos dos elevadores”, será outra coisa que estará por aí boiando.
*Luiz Henrique Antunes Alochio é doutor em Direito da Cidade (UERJ) e autor do livro Direito do Saneamento.