Daniel Tourinho Peres*
Mayra Goulart**
A Universidade Pública brasileira é um laboratório social. Primeiramente, ela é o maior experimento de mobilidade social do mundo ocidental. Um espaço que congrega pessoas oriundas de diferentes classes, compondo um corpo social predominantemente não branco e oriundo das camadas populares e média baixa. Nesse corpo, mais de 60% é oriundo de escolas públicas, 47% é preto ou pardo, sendo estes dados de 2019 e ainda subdimensionados.
Diferentemente dos outros países nos quais apenas os “pobres excepcionais”, gênios e esportistas, têm acesso à Universidade, restritas àqueles que podem pagar altas taxas de matrícula, mensalidade, ou mesmo, os custos de material, transporte e alimentação. No Brasil, nós tomamos a decisão de abrir as portas da Universidade para transformá-las em um trampolim social.
Para isso, nós enquanto sociedade pagamos para que esses estudantes pobres tenham condições de usufruir do direito à educação superior. A sociedade brasileira custeia sua alimentação, seu alojamento, seu transporte, além de não ser cobrada qualquer tipo de taxa. Ainda que a assistência estudantil necessite de mais recursos para viabilizar a permanência destes alunos. Pagamos essa conta e o fazemos porque compreendemos que, uma vez lá, este estudante fará a diferença não apenas em sua trajetória ascendente na pirâmide social, mas
porque a presença dele na Universidade a torna melhor.
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Aqui entra o segundo aspecto deste laboratório. Ao incorporar corpos subalternizados e invisibilizados, a Universidade incorpora outros pontos de vista, outras epistemologias e saberes, tornando-se mais capaz de lidar com a realidade complexa e multifacetada de um país continental. Uma possível greve irá prejudicar alunos mais pobres que acessaram a educação superior através do processo de democratização das universidades federais.
A solução para a questão está nas mãos do governo. Isto porque, estes estudantes vão se misturar com os filhos das classes médias tradicionais e, por vezes, até da elite propriamente dita, formando um amálgama difícil de se encontrar em qualquer outro espaço público, uma vez que não hierarquizado. Na Universidade não há privilégios nem critérios especiais para os mais ricos. A sala de aula é um aquário no qual as desigualdades são mitigadas. Daí a importância da presencialidade, da Universidade aberta e bem estruturada para oferecer as mesmas condições para todos os estudantes. Algo impensável no estudo à distância, no qual os filhos da classe trabalhadora assistem aula no
celular dentro do ônibus lotado enquanto voltam do trabalho, enquanto os filhos das elites o farão em seus quartos climatizados.
E tem mais, através da dinâmica de mobilidade geográfica propiciada pelo SISU, a Universidade pública mistura jovens de todos os lugares do Brasil. Em uma mesma sala de aula, estudam pessoas das mais diferentes origens geográficas e o resultado são fluxos informacionais ricos e complexos que tornam a formação desses estudantes, mesmo os oriundos das elites, muito superior àquela que se pode obter em centros de excelência privada, nos quais o aluno só é exposto a corpos e trajetórias similares as suas.
Quem opera este laboratório?
Quem faz essa engrenagem funcionar é um ator, muitas vezes, invisível: o professor. Desprestigiado por uma sociedade incapaz de reconhecer sua luta diária para fazer com que esta máquina de construção de mundos que é a universidade funcione. É este professor que administra os conflitos, é ele professor quem estimula, consola, anima essa miríade desnivel da de estudantes, cada vez menos preparados para a vida adulta, cada vez menos preparados para lidar com os conteúdos acadêmicos a serem debatidos.
É o professor que faz esse laboratório, essa incubadora de um país melhor funcionar. Nós somos a escada, o alicerce, o motor desta máquina.
Os professores foram decisivos na resistência ao governo Bolsonaro, que tinha como política a destruição das universidades públicas. Nos últimos anos, os salários tiveram desvalorização de aproximadamente 40%. Em que pese uma formação mais profunda, com a titulação de mestrado e doutorado, professores ganham menos que juízes, procuradores, auditores e muitos outros servidores públicos do executivo e dos outros poderes.
A proposta do governo federal é de recomposição zero dos salários dos docentes em 2024. As organizações sindicais da categoria iniciaram um debate sobre a deflagração de greve. O maior prejudicado com o fechamento das universidades será o aluno pobre, que não tem tempo a perder na sua luta contra as desigualdades da nossa sociedade. Este é o pior cenário, mas parece inevitável diante da intransigência nas negociações.
Os professores não estão alheios ao cenário de dificuldades fiscais que o país atravessa, contudo não podem pagar a conta do ajuste por mais um ano. Cabe ao governo federal a apresentação de uma proposta decente e factível. Está nas mãos do governo evitar que uma greve paralise as atividades acadêmicas. A universidade não pode parar.
*Daniel Tourinho Peres é Professor Dr. da UFBA
**Mayra Goulart é presidente da ADUFRJ e Coordenadora do Observatório do Conhecimento. É professora de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (PPGCS); e coordenadora do Laboratório de Partidos Eleições e Política Comparada (LAPPCOM).
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